Autor da história: Joana Franco
Quem conta a história: Anónimo
Organização: ULHT
Título: Alma: a memória constrói caminho.
Nível: Intermédio
Língua: Português
Resumo: Esta é a história de um homem, Eduardo, e da sua família. Ficamos a conhecer a sua mãe e o seu pai, os seus irmãos, a forma como viveu uma infância feliz numa pequena casa e como construiu a sua própria família com a sua namorada, Maria Isabel, deixando atrás de si um legado de respeito e amor.
Palavras-chave: memória, família, amor, esperança, trabalho árduo
Memória. Capacidade intrínseca que nasce com o ser humano. Algo que, para além de nos permitir viver o quotidiano de uma forma organizada e estruturada, concede também que tenhamos sentimentos saudosistas, lembranças, pensamentos que nos fazem recordar aquilo que realmente importa. A memória é uma capacidade que nos permite filtrar o que interessa para o futuro. Na verdade, a memória é simplesmente um retrato do que fomos. É uma lembrança sempre presente de um legado que deixamos aos outros.
Alma. Esta história é sobre alguém com muita alma. Alguém que vive livre de preconceitos, de julgamentos, de maldade. Alguém que sabe que, apesar de todas as capas existentes num ser humano, somos todos feitos da mesma matéria. Alguém que ensina com amor, com sabedoria, com silêncio. Que nos olha nos olhos com muito carinho e que tem humildade suficiente para saber que ainda não sabe tudo. Talvez nunca saberá.
Nasceu a 20 de junho de 1941, numa tarde de verão, em casa. A sua mãe chamava-se Delmira Franco, tinha 24 anos e este seria o seu primeiro filho. Estava nervosa e ansiosa para saber como era ser mãe: de um menino ou de uma menina. De uma coisa tinha a certeza, era um filho muito desejado. Nasceu em casa, algo habitual para a época.
Eduardo era um menino e Delmira chorou de felicidade. A partir dessa altura, Delmira teve a certeza de que nunca estaria sozinha.
Delmira era uma senhora analfabeta e sempre viveu com poucas possibilidades. A mãe de Delmira morreu pouco tempo depois de ela nascer e, passados poucos anos, morreu o pai. Deste modo, a vida obrigou Delmira a crescer junto dos irmãos. Era uma mulher sábia, a vida pesou-lhe, teve de crescer depressa e de uma forma até violenta, mas nunca perdia a esperança: era uma pessoa positiva. Sabia que, eventualmente, a vida lhe faria justiça. Desejava que tudo fosse mais fácil, mas nunca vergou. Lá está, por culpa da esperança que tinha.
O pai, Alberto, era carpinteiro, muito focado no trabalho, talvez por saber que era esse o sustento da sua família. Era um homem austero e que, apesar de rígido na educação, tinha um lado dócil e carinhoso com os filhos. A mãe, Delmira, não trabalhava, mas cuidava dos seus filhos e da casa como ninguém. Preocupada, atenciosa e tolerante, estas seriam algumas das muitas características de mãe de Eduardo.
A casa onde Eduardo vivia era pequena, branca, tinha um quarto, uma cozinha e uma sala ampla. A sua liberdade começava quando ia brincar para o jardim, aí sentia-se criança, sem obrigações nem responsabilidades. O peso dos problemas mudava, o ar que se respirava era diferente, a liberdade era uma palavra que, naquele momento, era sentida com outra intensidade.
Eduardo cresceu e à medida desse crescimento percebeu que a vida não seria fácil, pelo menos, naquela altura. As possibilidades económicas não eram muitas, a família foi aumentando e apenas um trabalhava. Apesar de focado, Alberto sabia que precisava de mais algum sustento. À medida que os anos iam passando, as dificuldades iam sendo maiores.
Depois de Eduardo nascer, durante 23 anos, nasceram mais seis irmãos. Um deles, José Mateus, morreu de meningite, com um ano de idade. Delmira ficou desgostosa e durante muito tempo foi difícil ultrapassar esta dor. Um filho é sempre um filho.
Delmira e Alberto tinham cabras, coelhos, galinhas e outros animais para venda, era mais uma ajuda para o sustento da casa, eram muitos e o que Alberto recebia mal chegava para tudo. Quando era pequeno, Eduardo cuidava dos coelhos, essa era a sua responsabilidade. Desde muito novo que os pais lhe incutiram este sentido de responsabilidade e obrigação para que quando crescesse fosse mais fácil perceber quais as prioridades.
Aos 16 anos, Eduardo começou a trabalhar. Como era o filho mais velho, sentia-se na obrigação de começar a ajudar. O seu primeiro trabalho foi como servente de pedreiro, era difícil. O primeiro ordenado e todos os outros eram entregues à sua mãe. Sabia que este dinheiro era uma ajuda para os seus pais.
Aos 18 anos, Eduardo foi para uma fábrica de cortiça. Em 1962, foi destacado para a tropa. No primeiro dia, foi para a recruta, era um pelotão de trinta homens em Elvas. O superior direto deste pelotão era um tenente, rígido, reto e bastante autoritário. Esta mudança drástica de vida não foi propriamente fácil. A cidade era diferente, os colegas não se conheciam e o ambiente vivido era de bastante tensão e autoridade. Esteve no Alentejo durante dois meses a tirar a recruta e, no dia de seleção, ficou apto para a Polícia Militar, sendo transferido para o quartel Lanceiros-2 em Lisboa. As rotinas eram outras, o dia começava às sete da manhã e logo de seguida tomava-se o pequeno-almoço, depois era a preparação física. Nos exercícios de treino físico, preparava-se e apurava-se a resistência física, a agilidade e a força. Ao meio-dia, almoçavam. À tarde, iam para as aulas teóricas onde se procedia à preparação de especialidade e para a carreira de tiro. No fim de semana, era altura de ir a casa. Durante 27 meses e 9 dias, esta foi a rotina de Eduardo. Em 1964, saiu da tropa.
Voltou para a fábrica de cortiça. O seu regresso foi recompensado. O cargo era melhor, mecânico de máquinas industriais. Aqui tinha a prova de que os seus superiores o viam com respeito e o seu trabalho era valorizado.
Num dia de verão, na fábrica onde trabalhava, conheceu o amor da sua vida, Maria Isabel. Era uma mulher de estatura média, com cabelos encaracolados escuros e olhos azuis, claros como água. Eduardo abordou-a uma primeira vez, na fábrica, e o primeiro impacto foi de desconfiança. A vida difícil que tinha passado fez com que Isabel se tornasse desconfiada. Eduardo conquistou-a pela paciência, persistência e alguma conversa que tinha. Ela acreditou e confiou. A partir desse momento, ambos sentiam que era para a vida toda. O amor uniu-os.
Era difícil esta paixão, Maria Isabel era controlada pela tia, que tinha alguma dificuldade em permitir o namoro. Eduardo tinha de ir à janela da sua casa, ficavam a falar durante horas, baixinho, para que ninguém os ouvisse. Falavam de sonhos, de dificuldades, de experiências de vida e do quanto se amavam. Planeavam o casamento e a forma como o iriam revelar aos familiares. Aí todos os problemas tinham asas, voavam para longe, a esperança enchia-lhes o peito e a paz já tinha luz. Maria Isabel tinha medo que alguém a pudesse ouvir, mas o amor falava mais alto.
Naquela época, era importante ter coragem para sonhar, viviam-se tempos de ditadura, a liberdade era pouco. O medo das palavras era diferente, a restrição de uma conversa entre amigos ou familiares estava imposta e os sonhos eram pequenos. A liberdade de pensamento, a igualdade de género ou até mesmo o modo de expressar algo eram temas difíceis. A realidade era esta, mas a vida continuava, o amor era algo que nunca se poderia limitar.
Maria Isabel queria Eduardo mais perto, mais presente, queria que tudo fosse mais fácil, pelo menos, uma vez na vida. Decidiu então, contar à tia. Teve medo, receio, que ao contar fosse piorar ainda mais a situação, mas, com força, encheu o peito de coragem e contou. A sua tia não concordou, não achou que fosse a altura, mas sejamos sinceros, o amor não tem tempos certos ou errados.
Acostumada à realidade, a tia de Maria Isabel exigiu conhecer Eduardo. Nesse dia, revelou que tinha medo que fosse para a guerra. Eduardo contrapôs dizendo que as suas intenções eram boas e que o seu objetivo principal era casar.
Ao fim de um ano, no dia 24 de abril de 1966, os sonhos transformaram-se em realidade. Este foi o dia em que Maria Isabel e Eduardo se casaram. Com pouco dinheiro na altura, o casamento foi humilde, mas tão cheio de sentimentos. Eduardo construiu a mesa onde os convidados se sentaram para celebrar o seu amor. Foi um dia feliz.
A próxima etapa seria constituir família. No primeiro ano de casamento, tentaram ter um filho, conseguiram, mas não sobreviveu. Maria Isabel, chorou e foi difícil de ultrapassar essa dor. O desgosto e revolta eram sentimentos vividos com intensidade. Um filho é sempre um filho.
Com o amor que os unia, ultrapassaram e tentaram novamente. A força e esperança permitiram vencer. Foi então que nasceu Carlos, no dia 7 de abril de 1970.
Eduardo chorou de felicidade e soube que, a partir desse momento, nunca estaria sozinho. Lembrou-se de sua mãe, Delmira.
Carlos era um menino e Maria Isabel agarrou-o como se o mundo fosse acabar. Mas era exatamente o contrário. A vida tinha acabado de começar. Foi talvez por medo que o agarrou ou então para festejar a vitória que a vida lhes permitiu ter.
Passados 4 anos, no dia 5 de março de 1974, nasceu uma menina, decidiram chamar-lhe Isabel Maria. Hoje sabemos porquê. E faz todo o sentido.
Entretanto, deu-se o 25 de Abril de 1974, a tão aclamada Revolução dos Cravos. Eduardo e Maria Isabel sabiam que algo iria mudar. Sabiam que a política e até o ambiente social mudaria por completo as suas vidas. A democracia ainda estava longe de ser certa, as condições e realidades que poderiam ser vividas eram ainda turvas.
Eduardo continuou a sua vida, sabendo que tinha de avançar, apesar de toda a felicidade e espanto que se vivia em Portugal. Existia uma casa, uma família e muitas contas que chegavam sempre. Por isso, trabalhou e continuou.
Eduardo era um pai como a sua mãe foi: tolerante, paciente e carinhoso. Mas as dificuldades que se sentiam na altura eram difíceis de ultrapassar. Foi então que Carlos, aos 13 anos, decidiu desistir da escola e começar a trabalhar. A vida que teve, apesar de curta, deu-lhe uma maturidade superior àquela que seria normal para uma criança daquela idade. Naquela altura, não existia hipótese de esconder nada, os problemas estavam à vista.
Carlos sentia-se livre quando respirava o ar que lhe batia na cara quando jogava à bola com os seus amigos num descampado perto de casa. Era um homem feito quando ia trabalhar, os sentimentos eram confusos naquela altura, principalmente com treze anos. Não sabia bem o que ser, nem o que viria a ser. O comportamento entre as pessoas que o rodeavam era formatado de acordo com o contexto em que se inseria. Mas nunca deixou de ser menino. Apesar de todo o trabalho a que estava exposto, desvalorizava a confusão mental que sentia, talvez por força da genética, ou então porque vivia numa casa de eternos otimistas. Depois de sair do trabalho, gostava de ir jogar à bola, de ir apanhar limões, de comer figos acabados de apanhar da árvore à sombra. Se calhar, era apenas para se reencontrar consigo mesmo e sentir-se igual a todos os outros. Ou então talvez porque nunca deixou de ser menino.
Isabel Maria ajudava a sua mãe em casa, fazia alguns trabalhos de costura. Carlos e Isabel Maria viviam numa casa com apenas dois quartos, um para os seus pais, outro para Isabel Maria. Carlos dormia na sala. A realidade era esta, não lhes fazia diferença. Em casa eram amados e acompanhados. O amor acaba sempre por superar qualquer adversidade.
Na vida de Eduardo, nunca existiu muita fartura, mas o amor sempre superou tudo. O amor sempre foi a arma com que se defendia de muitas lutas que tinha de vencer. E, afinal, a vida é mesmo assim.
Há sonhos ainda por conquistar, a esperança não foi abalada uma única vez, porque Eduardo sabe que, apesar de um coração ferido, por vezes, a esperança e o otimismo permitem que os dias sejam bons. A desvalorização dos problemas ou das dificuldades são algo intrínseco a Eduardo porque, no fim, um dia mau acaba por ser apenas e só um dia mau. Temos tantos outros pela frente.
Felicidade e superação são duas palavras que o descrevem, hoje sabe que nada é maior e mais duro de ultrapassar do que as batalhas sem amor. Eduardo trata com carinho, com respeito e com amor todos. Esta forma de estar na vida permite viver pacificamente e em paz.
Hoje, Eduardo, tem 80 anos, e está sozinho. Maria Isabel foi embora, voou na altura dos seus sonhos e olha para baixo. Eduardo tem dois filhos e uma neta, sente-se amado. Ele sabe que amor é aquele que o vento nunca levará e enquanto existir memória existe lembrança.
Quando Maria Isabel se foi embora, Eduardo queria dizer-lhe adeus mais uma vez, queria despedir-se de forma heróica como ela merecia, queria abraçá-la e senti-la mais uma vez, mas não conseguiu. Cada vez que fechava os olhos, o pensamento era sobre ela. Queria tempo, mas o tempo era dela, queria poder sofrer, mas sabia que todo o amor que tinha era por ela e naquele momento mais nada sentia. Chegou à conclusão de que a única coisa que os separava era a existência física. Foi então que, desde esse momento, olha para o céu e fala com ela, conta-lhe como está a vida, como ainda a ama e como ela era bonita. Diz-lhe que tem saudades, mas que vai vivendo sempre com ela no pensamento. Sabe que ficou para fazer jus ao seu amor, para contar bem alto todas as histórias de amor que viveram. Ficou porque ela quis que ele ficasse. Eduardo amou, ama e amará para sempre Maria Isabel. Que amor tão lindo o deles. Maria Isabel não morreu nem nunca morrerá, enquanto existir voz, vai existir presença.
Eduardo hoje sabe que a sua mãe tinha razão. Delmira dizia que a felicidade não tem peso, não tem medida, não precisa de muito para ser alimentada. Precisa apenas de pureza.
Eduardo é um homem puro, de coração cheio e pronto para dar, vive sem fachadas, sem segundas intenções e humildemente. Sabe que a felicidade é algo tão simples e tão fácil de se encontrar que por vezes a vida torna-se difícil para não a quer viver. Aprendeu o valor da vida, e aproveita o tempo. Tempo aquele que sabe que se esgota, que não é eterno nem muito longo. Por isso hoje, aproveita o tempo que tem e que ainda lhe resta, porque sabe que o tempo não volta.
Graças à memória que conserva, constrói a sua vida e o seu caminho, é perspicaz, não se deixa cair muitas vezes no mesmo erro porque sabe que já lá esteve. Vive a vida humildemente com o que construiu no passado. Hoje sabe, que para avançar do presente para o futuro é preciso ter em consideração o passado. E que bonito passado que tem.
Cada cabelo branco, cada pedaço de pele enrugada, cada olhar, conta uma história de Eduardo. E são todas tão bonitas de se ouvir. Hoje, eu oiço-o atentamente, sei que existem tantas coisas por ouvir. Às vezes é preciso apenas estar em silêncio e sentir o amor que tem e que lhe ficou. Por vezes é apenas necessário o colo que me dá, que me embala e que me dá consolo. São nestas alturas que descobrimos que perdemos tanto tempo em quase nada. É preciso apenas tempo para viver, para sentir para amar. Eduardo ensina-me hoje, para que não fique limitada apenas àquilo que sei, várias formas de amar. E existem tantas.
Eduardo prefere amar quando soma, quando duplica, quando acrescenta. Amar sem exigir, sem esperar nada em troca, sem explicação. Porque nada é mais forte do que o tempo que tem para amar.
A vida que teve deu-lhe força para a vida que tem, a perseverança faz com que avance devagar, sem pressa de correr atrás de nada. Vive o presente, como se deve viver. A história que teve é baseada em pessoas que passaram por si, e que deixaram uma marca. Hoje, é ele que passa por nós e deixa algo de si. Que bonita a história de Eduardo.
Hoje é ele quem ensina, sabe que a memória permite construir caminho. É a herança que deixa: o amor.