Autor da história: Tomás Barroso
Quem conta a história: Anónimo
Organização: ULHT
Título: Madalena
Nível: Intermédio
Língua: Português
Resumo: Contada na primeira pessoa, a história de Madalena é um relato ternurento do dia a dia de uma velha senhora que viveu uma vida cheia de momentos felizes e um grande amor. O relato é pontuado por memórias desse seu amor e apontamentos cheios de humor.
Palavras-chave: amor, memória, família, serenidade, terceira idade.
– Senhora Dona Madalena. A minha ideia é entrevistar pessoas de longa idade e com uma vida plena.
– Estamos em outubro ou em novembro, filho?
– Outubro de 2020
– Outubro, mês da azáfama, do começo das aulas, de um novo ano. Era uma animação!
Lembro-me vagamente do cheiro dos cadernos novos, da minha caneta Bic e, mais tarde, do orgulho de ter a primeira Parker. Acho que me senti crescida. Era um marco do começo da vida dos mais crescidos.
Lembro-me, sim, da cara dos meus filhos de alegria e excitação ao escolher o material. Começaram com a bonecada da Heidi e da pantera cor-de-rosa e afins, passaram pelos motivos de surf que recortavam das revistas da modalidade e depois colavam nos cadernos como de um puzzle se tratasse e por fim chegaram aos tons mais discretos, sóbrios que condiziam com a minha antiga Parker. Ainda a guardo na gaveta da escrivaninha e um dia será do meu neto mais velho!
Também gostaria de ver a cara dos meus bisnetos escolher o material, mas já não é possível. Não que eles não quisessem, mas correm todos incessantemente para cá e para lá e perdiam muito tempo se me levassem. Não levo a mal, compreendo, mas tenho saudades de sair sem pressa.
– Passou uma grande guerra.
-É verdade, mas, no entanto, a posição da neutralidade de Portugal e a abertura dos canais diplomáticos e comerciais com ambas as partes beligerantes atenuou os efeitos da guerra.
Contudo, havia racionamento e o país era austero e não podia haver excessos. Lembro-me da quantidade de pessoas que iam para as filas para trazer os bens essenciais para casa. Dos rostos fechados, da expressão desolada e com futuro incerto de quem não vê caminho, sem estudos, sem grandes horizontes.
Também gostava de me ter formado, mas o meu pai dizia que isso era para os rapazes. As raparigas deviam ser prendadas, fazer compotas e cuidar da família. Achava ele e muitos outros e outras que isso era elogioso para as mulheres que depois poderiam exibir as suas crias imaculadas nos chás ou à porta das escolas.
A causa social também fazia parte da vida da mulher e adorava fazer parte ativa por todos os motivos. Era uma forma de ajudar, mas também de conviver e fazer novos amigos. Fui Noelista e tinha imenso orgulho nisso.
-Era uma associação?
-Sim, era uma associação de senhoras que se dedicavam à propaganda do catolicismo e às causas sociais. Conheci muitos bairros pobres de Lisboa. Na maioria andavam descalços e em situações mais solenes, como ir ao médico, os sapatos andavam de irmão em irmão.
O meu pai estava ligado ao governo, mas de política não se falava em casa, não fosse alguém ter ideias diferentes. Era uma provocadora e adorava puxar o tema, o que nem sempre era boa ideia. Não que o meu pai não apreciasse, mas não o podia dizer. Sabia que tinha muito orgulho em mim porque por trás daquela fatiota estava o homem mais meigo e inteligente que conheci. No entanto, fazia parte da mentalidade da época e sabia bem que se me desse gás poderia motivar-me a ser uma perigosa liberal.
Sempre fui travessa e esticava até ao limite. Não por rebeldia, mas porque queria ser muito mais do que a mulher de alguém, gostava de pensar por mim e, pelo menos, dentro da cabeça e da alma podemos sonhar livremente.
Sabia que um dia seria livre de escolher e consegui. Depois dos filhos imaculados tratados, formados e casados com as suas mulheres livres de usar minissaia e cores garridas matriculei-me na faculdade de direito e passei de só matriarca a doutora.
Não foi fácil, mas nesse dia lembro-me de ver nos olhos castanhos e profundos do meu querido pai o orgulho, a felicidade e uma réstia de remorsos sem culpa, refém de uma mentalidade que só agora me permitiu chegar.
Já muito velhinho, quase como me sinto por vezes, fez questão de ir assistir à cerimónia com a sua nova companheira, a inseparável cadeira de rodas, pois o grande amor da sua vida só pôde assistir perto das estrelas.
Foram anos magníficos em que me pude dedicar verdadeiramente à minha profissão. Realmente, como dizia o professor Agostinho da Silva, devíamos começar do fim para o Início. Quando somos novos temos muita energia, mas pouca experiência. Mais velhos, a energia já não é tanta, mas só a sapiência da vivência nos permite olhar de forma e de vários ângulos.
Não sei porque não gostam de empregar pessoas mais velhas. Para além da sapiência de vida têm sempre mais disponibilidade.
Defendi muitas causas, muitos sem sapatos, uns com mais e outros com menos razão para defesa, mas é para isso que os advogados servem. Para defender as causas dos seus clientes.
No início, pensava que a ética não me deixaria defender todos os casos, mas depressa aprendi que ser advogado não é julgar ética ou moralmente, mas sim aplicar as leis escritas, o direito e aprendi também que qualquer pessoa por pior que seja tem o direito e o dever de ser julgado pois só a justiça pode dar sentença. É isto o estado democrático.
Agora saio para ir ao médico e ao cabeleireiro. Gosto de ir ao cabeleireiro porque me faz sentir mais bonita e porque em sessenta minutos fico a saber mais do que nos telejornais dos mil canais da televisão.
Quando era nova, não tinha televisão, mas também não me fazia falta nenhuma. Ao serão, ouvíamos rádio, vozes esganiçadas e outras mais afinadas, notícias da guerra e a voz dos locutores da época.
Mais tarde, veio a televisão que iniciava e encerrava a emissão com o hino nacional que nos obrigava a levantar por uma questão de respeito.
Foi num desses serões que conheci o Stefan. Era um jantar igual a tantos outros porque lá em casa era habitual recebermos refugiados para se reunirem com o meu pai para tratarem da sua reintegração.
Fugiam do centro da Europa, Alemanha, Áustria, Polónia e depois de todos os territórios ocupados pelas tropas nazis.
O Stefan veio fugido da Polónia. O pai era polaco e, graças a Deus, a minha sogra portuguesa, o que nos permitiu, desde sempre, conversar horas a fio sem a barreira da língua.
Acho que, por mais barreiras que houvesse, o nosso destino era ficarmos juntos até que o mesmo Deus mo levasse.
Estava a tocar piano, acho que Chopin, quando ele entrou na sala. Moreno, alto e com uns olhos azuis que me enfeitiçaram logo ali e para sempre.
Só percebi quando a minha mãe me pediu para voltar a tocar.
Confessou-me mais tarde que sentiu o mesmo e todos os dias do resto das nossas vidas.
Formou-se em engenharia o que nos fez viajar pelo mundo, conhecendo diferentes povos e credos.
Por isso, cá em casa, o tema do racismo e da intolerância religiosa é um tema incompreensível. Acho que é por medo do que é diferente. Não sabemos o que é isso porque tivemos o privilégio de saber por vivência que o ser, em si, está acima de qualquer outra coisa.
Desse amor nasceram quatro filhos lindíssimos, o Jochen que vive na Austrália, a Maria no Brasil, o Bernardo em Madrid e, graças a Deus, o Antoni no Estoril.
Mas, voltando atrás, antes que me esqueça, de ir ao médico não gosto nada. É uma trabalheira do despe, veste, respira fundo e ,no fim, saímos de lá com um testamento de medicamentos e cem euros de farmácia. Se não fosse desculpa para sair de casa podia ser online como dizem hoje.
Vou sempre com os meus filhos, mas eles olham muitas vezes para o relógio. Devem estar a ver se está estragado, mas não me querem preocupar, pois sempre que olham reparo que estão a ver se percebi. Finjo que nem noto. É por isso que não uso relógio!
Quando dá tempo, vamos lanchar e gosto de oferecer. Sinto-me útil. Quando vêm os netos rapazes é que não gosto tanto, pois lá se vai o orçamento! Embora muito educados, insisto para que peçam mais um bolinho, uma tosta mista ou a pastelaria inteira tal o olhar faminto por trás da compostura.
Mas é tão bom estar com eles. Sinto-me mais nova e divertimo-nos tanto!
Sempre tive um espírito jovem e brincalhão e, por vezes, lá esborracho um pastel de nata no nariz deles ou faço qualquer disparate. Eles adoram, dizem que sou uma bisavó moderna que os compreende. Já com os meus filhos e netos tenho de manter a compostura. É um segredo nosso que um dia eles poderão contar porque já cá não estou.
Quando era nova sempre disse que nunca iria ser pesada para os meus filhos. Graças a Deus e a muita imaginação tenho conseguido, exceto a ida ao cabeleireiro e a visita inútil ao médico. Mas qualquer dia vou de Uber! Agora é moda, já não se usam táxis. Tinha um taxista que me levava para todo o lado, mas já morreu. Se calhar foi por ter aparecido a Uber!
Não sei é como iria chamar porque não percebo nada de telemóveis. Dizem que lhes estou sempre a ligar, mas acho que não. Estes aparelhos é que fazem coisas estranhas. Já tiveram para me tirar porque, em três dias, esgotei o saldo a ligar para o programa da tarde. Não sei porque ficaram tão zangados. A viagem era para eles! Enfim, se um dia conseguir o prémio também não lhes dou e vou gastar tudo na Uber para ir ver o mar sempre que me apetecer.
Gosto tanto do mar e gostava tanto da praia, do cheiro a maresia, da brisa do fim do dia. Tenho saudades até da areia entre os dedos dos pés que detestava naquela altura.
Agora só vejo o mar na televisão e areia só nas amêijoas e, em dia de festa, com dezenas de olhos a olhar indiscretamente para ver se não me engasgo.
Todos os dias me engasgo várias vezes e ainda não morri, mas eles não sabem. Devem pensar que sou tonta e não sei tratar de mim!
Todos os dias invento objetivos para me superar e é isso que me tem mantido assim. Um dia caminho do quarto para a sala, no outro da sala para o quarto. Já cheguei a percorrer a casa toda que, mesmo assim, ainda tem dois quartos, sala, casa de banho e cozinha. Sentei-me cinco vezes durante essa epopeia, mas consegui. Volta e meia há uns acidentes com as atividades mais radicais.
Queria subir os dois degraus do banquinho da cozinha para ginasticar os joelhos, mas acabei estendida no chão com uns senhores de encarnado a tratar de mim antes de passar sete horas no hospital.
Agora que estou a falar disso, nunca mais vi o meu banquinho!
Fui aos quatro cantos do mundo e agora percorro as quatro paredes do T2. Já sei de cor todos os riscos da parede e alguns rabiscos que os bisnetos fazem a achar que não vejo. Esses não os apago. Valem tudo!
Quando toca a campainha alegro-me. Devem ser eles. Dantes conhecia até a forma de tocar de cada um deles, mas agora já não ouço bem, mas também não quero usar aparelho. Acho que me faz parecer velha!
Mas quando tocam à porta se não conheço não abro. Eles dizem que não posso abrir porque a última vez que abri ganhei uma enciclopédia e perdi muitos euros. Gostava dela! Entretinha-me a ler e tinha umas imagens bem bonitas. Eles dizem que tinha má qualidade, mas queria lá saber! Esta gente nova é muito esquisita.
Proibiram-me mesmo de abrir a porta e até disseram para fingir que não estava em casa. Isso adorei fazer! Sentir-me uma atriz a representar. À conta disso cortaram a luz porque era o senhor da companhia que a vinha contar. Zangaram-se comigo outra vez. Não compreendo esta geração.
Qualquer dia, se calhar, vou para um lar. Percebo uns zunzuns e quero ser eu a tomar a decisão que já está decidida. Amanhã vou falar com eles. Vou pôr-me bonita, vou convidá-los para virem cá a casa e vou participar.
-Mas gosta de estar aqui no Lar?
-Adoro! Não se zangam comigo, a não ser quando ligo várias vezes para o próprio lar a perguntar por mim ou quando esborracho a fatia do bolo de anos no nariz de alguém. Mas diverte-me!