Autor da história: Tomás Almeida

Quem conta a história: Anónimo

Organização: ULHT

Título: De “Muchacha” a Mulher – Empatia e Conflito

Nível: Intermédio

Língua: Português

Resumo: Carmen, venezuelana de nascimento, é uma mulher batalhadora que se instala em Portugal e luta por uma vida melhor e digna. Esta é uma história que começa na Venezuela, com as muitas dificuldades sentidas nesse país e que trazem a protagonista até Portugal, à procura de uma vida melhor e onde o seu sonho se cumpre.

Palavras-chave: emigração, esforço, dedicação, perseverança, superação.

De “Muchacha” a Mulher - Empatia e Conflito

Carmen Judith Bermejo nasceu em 1981 na Venezuela. A cidade de Calabozo onde Judith cresceu e viveu até aos seus dezassete anos fica aproximadamente 300 km a norte de Caracas, a capital. 

 

Nos anos 80 e 90, a cidade de Calabozo é urbanizada, mas não é tão desenvolvida como a capital do país. Na capital da Venezuela, apesar das boas condições a nível de infraestruturas e educação, muitas vezes, faltam os bens essenciais para a sobrevivência da população, nomeadamente, comida e medicamentos. As áreas da tecnologia, eletricidade e comunicação também estão subdesenvolvidas. 

 

O sistema escolar venezuelano tem, em média, quarenta alunos numa sala de aula, em Portugal, vinte e cinco a trinta. Este grande número de alunos por turma origina um grande desgaste psicológico nos professores. Neste país da América do Sul ainda se recorre muito a bibliotecas para pesquisa de informação, enquanto em Portugal já se usa a internet como fonte e meio de pesquisa. Na Venezuela, falham constantemente a luz, a internet e os telefones, o que dificulta a comunicação entre as pessoas dentro do país e do exterior para o país.   Muitas destas questões ainda não foram resolvidas devido, principalmente, ao regime político que governa o país. Há uns anos atrás, houve um regime democrático que vigorou até o presidente Hugo Chávez tomar o poder e governar entre 1999 e 2013.  Com este presidente, o sistema político foi alterado. O seu sucessor e atual presidente, Nicolás Maduro, já assumiu que também não abandonará o poder de livre vontade. Este nível de instabilidade política feriu o país social e economicamente, sendo, atualmente, o país com o maior nível de inflação do mundo. As pessoas vivem, na sua maioria, numa grande pobreza. O ordenado médio mensal do cidadão venezuelano é o equivalente a dez euros e para tudo tem de estar numa fila. Porém, mesmo que tivesse dinheiro, não existem bens essenciais nos supermercados e as farmácias e os hospitais não têm medicamentos para aliviar o sofrimento humano.  Ao nível das liberdades individuais, os cidadãos também estão muito limitados. Há um grande controlo sobre as pessoas, inclusivamente sobre as suas comunicações para o exterior. O governo corta muitas vezes as ligações telefónicas e de internet e o país fica isolado.

 

Apesar de todos estes constrangimentos no seu país de origem, a infância de Carmen foi feliz (até um certo ponto) e bem-aventurada como a mesma descreve. Recorda-se de brincar na rua com os vizinhos e de andar de bicicleta. Quando chovia, pedalava e corria pelas ruas, onde sentia a chuva a bater no seu rosto. Recorda-se, com muita saudade, do cheiro intenso da terra molhada. A chuva tropical e o cheiro que exalava a terra húmida criam uma sensação de leveza, nostalgia, e contentamento que Carmen sente dificuldade em expressar por palavras. Um cheiro inigualável, afirma! Esta é a primeira coisa que se recorda quando pensa na Venezuela. 

 

Relativamente a Portugal, Carmen afirma que aprecia, também, o clima português, mais especificamente, da Área Metropolitana de Lisboa.  Sente alguma tristeza, pois os verões portugueses são, normalmente, secos, não havendo assim a oportunidade de sentir o cheiro da terra encharcada que tanto adora.

A pessoa entrevistada fala também da cozinha tradicional.  Na Venezuela, os seus pratos favoritos eram “parrilla criolla”[1], “las arepas”[2], “las hallacas”[3] e o “pavilhão crioulo”[4]. Nesta fase da entrevista, Carmen comenta que a gastronomia portuguesa e venezuelana tem algumas semelhanças como grelhar a carne “parrilha”, mas também diferenças. Em Portugal, é costume grelhar peixe enquanto na Venezuela o peixe, geralmente, é frito. Diz também que a gastronomia portuguesa é mais variada, ao nível de confeção e dos produtos utilizados, do que a gastronomia venezuelana.

 

Carmen Judith conheceu, de perto, as raízes da sua família. Chegaram a viver em zonas campestres onde ainda hoje as condições dos camponeses são muito duras. Carmen diz que a vida dos seus pais foi bastante complicada. Porém, os pais de Carmen conseguiram construir a sua casa, com muito esforço e trabalho árduo, apenas com capitais próprios sem a ajuda do Estado. O pai de Carmen construiu de raiz o seu negócio que durante o dia funcionava como charcutaria e à noite como um pequeno restaurante que vendia “parrilla”[5]. Todavia, esta alegria foi roubada da sua vida e da vida da sua família. O sucesso do negócio do pai de Carmen trouxera bastante reconhecimento social. Contudo, quando o sucesso surge, a inveja também se revela. E foi o que aconteceu. O pai de Carmen tinha sido “avisado” para transferir o seu negócio para outro lado, porém, recusou. Esta tomada de posição iria custar a vida ao progenitor da minha entrevistada. Deste modo, com nove anos, Carmen fica órfã de pai e a sua família fica devastada e destruída.

 

Após este acontecimento trágico, tudo mudou. A partir daí, as coisas não foram nada fáceis. A mãe de Carmen vendeu o negócio do falecido pai e depositou o dinheiro no banco. Mas, ao fim de um tempo, o banco abriu falência e a família perdeu todas as poupanças que tinha. Com mais este trágico acontecimento, a mãe de Carmen, para tentar manter a casa e sustentar seis filhos, criou um negócio em casa, confecionava e vendia comida, como gelados, gelo, porco frito e as famosas “hallacas”[6]. Contudo, todo o esforço feito pela mãe de Carmen não chegou para manter todos os filhos na escola. Os irmãos mais velhos de Carmen tiveram de abandonar os estudos para ajudarem no sustento da família e as suas irmãs tiveram de ir trabalhar, mas conseguiram continuar os seus estudos. Aos treze anos, Carmen viu-se obrigada a ir trabalhar. Carmen diz que foi ensinada desde pequena a fazer todas as tarefas domésticas de forma a ser independente e responsável. Nessa época, o trabalho de Carmen era, essencialmente, costurar roupa, limpar casas e tomar conta de crianças. Carmen trabalhava em casa de famílias com mais recursos, por exemplo, em casa de professoras, onde às vezes passava os fins de semanas. Na casa da família Bermejo, todos tinham de ser independentes e contar com o seu próprio dinheiro, pois, o ordenado da mãe de Carmen só chegava para sustentar a casa. Posteriormente, a minha entrevistada foi trabalhar para um negócio de venda de componentes de eletrónica para veículos automóveis. Além de trabalhar, ela também estudava. Carmen emociona-se, pois este é um tópico sensível. Numas férias de Verão, quando Carmen tinha dezasseis anos, e estava a trabalhar ao fim-de-semana na casa de um casal amigo, esta viu, pela primeira vez, aquele que viria a ser o seu futuro marido, um português. Carmen começou a namorar aos dezasseis anos de idade e aos dezassete casou (com autorização da mãe). A sorte finalmente sorria a Carmen. Apesar de, atualmente, Carmen considerar que casou muito cedo, na época, ela acreditava que tinha tomado a decisão certa. Após o casamento, viajou com o marido para Portugal. É em dezembro de 1998 que a entrevistada chega a Portugal, ou seja, é a primeira vez que está num país da Europa, quando falta perto de um mês para atingir a maioridade. 

 

Apesar de tudo correr bem, Carmen teve de ultrapassar o problema da língua. Apesar de ambas as culturas terem alguns pontos em comum, e a língua não ser, aparentemente, muito diferente, era um obstáculo em certas situações. Para ultrapassar este problema inicial, teve de se esforçar bastante. No início, inscreveu-se no fundo de desemprego onde se tentou integrar. Frequentou um curso de informática e, posteriormente, um de língua portuguesa. Aproximadamente, sete meses depois, conseguiu arranjar emprego. Começou a trabalhar numa fábrica de circuitos eletrónicos para carros que se situava no Seixal. Este emprego foi bastante útil, pois permitiu a Carmen desenvolver as suas competências de comunicação oral e escrita. A convivência no trabalho foi um fator determinante para que Carmen começasse a comunicar melhor na língua portuguesa. Contudo, Carmen sentiu que só conseguiu atingir um nível de fluência bastante razoável após residir dois anos em Portugal. 

 

Carmen fala-nos ainda de como era a sociedade portuguesa no final do século XX e início do século XXI. Diz-nos que existia um ambiente de segurança e estabilidade. Na época, vestia roupas simples, como calças de ganga e T-shirts, e calçava ténis ou botas. Residiu, inicialmente, na Baixa da Banheira. Morava numa zona urbana e tinha acesso a todos os bens de primeira necessidade. Estava perto do hospital, escolas, supermercados e parques e era fácil deslocar-se nos transportes públicos para Lisboa ou Setúbal, situação que não acontecia na Venezuela por ser perigoso viajar, em especial, após o anoitecer. No seu país de origem, se o autocarro ou carro avariassem, o mais certo era os ocupantes do veículo serem assaltados, violados e /ou mortos. Além disso, também precisava de uma autorização para viajar de um estado para o outro e nem sempre essa autorização era concedida. Se o viajante for menor de idade, o seu progenitor também tem de dar autorização, por escrito, para que a criança/jovem possa circular nos transportes públicos.

 

Carmen já se integrou bem em Portugal e na cultura portuguesa.  Ela sempre foi lutadora e ambiciosa. Vejamos: em 2003 foi fazer um curso de mediação de seguros, era trabalhadora-estudante. A partir daí, Carmen começou a recrutar e a angariar clientes para o seu novo projeto. Esta insistência e persistência em construir uma carreira, especialmente como trabalhadora independente, vem, penso eu, da sua família. A família conseguiu sobreviver com o seu próprio suor e dinheiro, apesar do pai de Carmen ter falecido. Quando este morreu, a mãe de Carmen teve de se reinventar para conseguir pagar as contas da casa. O espírito combativo é percetível em Carmen, visto que esta já passou por imensas adversidades na vida. 

 

Carmen demorou, assim, dois anos (entre 2003 e 2005) a angariar clientes para poder constituir o seu negócio de mediação de seguros. Em 2005, despediu-se do seu emprego na fábrica e começou a trabalhar na área da mediação de seguros, juntamente com o seu marido, no Lavradio, Barreiro. Entre 2007 e 2009, trabalhou arduamente como funcionária até que em, 2009, divorcia-se e fica com a empresa, conseguindo, assim, o seu grande sonho de ser gerente da empresa” Tocha-Seguros”.  Carmen acabara de atingir mais um dos seus múltiplos objetivos de vida. 

 

Contudo, a ânsia de Carmen para melhorar e evoluir não acabara aqui. Em 2012, Carmen comprometeu-se a finalizar o 12º ano de escolaridade. Este objetivo foi inicialmente   traçado quando Carmen aterrou, pela primeira vez, em Portugal.  Sendo assim, Carmen inscreveu-se em regime pós-laboral e conseguiu concluir, enquanto trabalhava, o 12º ano de escolaridade, através do programa das “Novas Oportunidades”.  Quando se pergunta qual o sentimento de receber o diploma, Carmen apenas nos diz que foi só mais uma etapa da sua vida concluída. Apesar de soltar uma espécie de riso nervoso, demonstrando, assim, como foi exigente e complexo o processo de finalização do ensino secundário . Carmen fala ainda de como, futuramente, gostava de frequentar na faculdade áreas como gestão ou engenharia civil. Ambas as áreas estão direta e indiretamente relacionadas com a mediação de seguros.

 

Carmen diz que aprender a língua portuguesa e acabar o 12º ano foram etapas complicadas. Ela acredita que numa faixa etária mais jovem era mais fácil adaptar-se a mudanças, ao passo que na adolescência e na idade adulta o mesmo não se aplica. Existem outras preocupações e outros compromissos e temos de dividir o tempo entre o que é obrigatório e o que queremos fazer. Foi isto que Carmen sentiu como principal barreira para atingir os seus principais objetivos de vida. O facto de ter compromissos como trabalhar, e ainda por cima, num país diferente onde a língua também não é a sua língua materna, torna bastante mais difícil atingir objetivos e cumprir o seu propósito. Carmen fala nesta parte da entrevista com um tom ligeiramente mais sério. Denota-se que foi bastante complicado chegar ao patamar que Carmen, por mérito próprio, atingiu.

Carmen revê e reflete sobre o seu passado e pensa em como será o seu percurso futuro. Atualmente, Carmen abriu uma nova empresa. Diz-nos que, em 2020, em plena pandemia arriscou e abriu “Carmen-Bermejo Construções” porque acredita nas suas capacidades e crê que será uma grande empresa. Nestes anos, a sua aprendizagem evoluiu, tornando-a ainda mais forte, mais focada e mais atenta para delinear melhor o seu futuro, aproveitando a sua experiência. Esta permite-lhe fazer melhores escolhas e parcerias, partindo dos princípios básicos incutidos pelos seus pais, tais como, lealdade, honestidade, trabalho e ordem.  Acredita que agora é a sua vez de tomar conta da sua mãe cumprindo, sempre que pode, com as suas responsabilidades monetárias, ajudando a mãe à distância. Se Deus permitir, pensa trazer a mãe para Portugal, para perto dela, de forma a retribuir, na sua velhice, o que qualquer mãe merece pelo simples facto de nos trazer a este mundo, ou seja, cuidados, carinho e afeto. A vida é uma curta passagem e não tem preço.  Hoje, com quarenta anos, com toda a sua aprendizagem e bagagem cultural, agradece aos seus pais e à sua força de vontade por ter chegado a este país bastante jovem e apesar de não ter cá família, ter construído os seus sonhos com o objetivo de atingir a felicidade.  Acredita que sem esforço nada é concretizado. Os sonhos fazem-nos mais felizes.  Se os concretizarmos terá valido a pena termos passado por dificuldades. Por isso, é importante acreditarmos nas nossas capacidades e focarmo-nos nas nossas metas. Sem dúvida, a sua chegada a Portugal foi determinante para a sua evolução, pois o país acolheu-a bem, e conseguiu integrar-se na sua cultura e absorver a sua língua. Apesar de ser um país pequeno, Portugal dá oportunidades aos emigrantes, as pessoas são acolhedoras e é um país seguro, o que não tem preço. Estando Portugal na União Europeia, todos nós temos beneficiado em termos do nosso desenvolvimento cultural e comercial. Existe a livre circulação de pessoas e bens entre os vários países da União Europeia e isso, é sem dúvida, uma mais-valia para o nosso trabalho e para o nosso desenvolvimento. Está muito grata ao nosso país pelas oportunidades que tem tido e pela sua evolução pessoal.

 

Apercebe-se então que já vive há mais anos em Portugal (vinte e dois anos) do que viveu na Venezuela (dezoito, aproximadamente) e mostra um ligeiro sorriso. Diz que para um emigrante é uma aventura sair do seu país de origem e ir ao encontro do desconhecido. É uma mudança total.  Mudamos de amigos, de ambiente, de clima, de projetos, de país.  Gosta de Portugal, tem-se adaptado bem, tem conseguido alcançar sempre aquilo a que se tem proposto. Não pode dizer que seja mau estar em Portugal visto que é um país que oferece condições para quem quiser chegar mais além. É claro que não é fácil ser emigrante e Carmen menciona, também, que sentiu imensa falta da família, aqui em Portugal, dando um longo suspiro.

A minha última pergunta a Carmen, foi: – Qual seria a sua mensagem, para as pessoas, se escrevesse um livro? Foi assim que respondeu: – “Nós, como seres humanos, devemos sempre fazer o bem. A juventude precisa de ter objetivos para se desenvolver. A vida é muito mais do que nós pensamos, pois é preciso muito sacrifício e muito esforço. Eu noto que a camada mais jovem não tem noção disso, pois, para nós conseguirmos o que nós queremos, temos de ser fortes, persistentes e não desistir”.


[1] Prato típico venezuelano

[2] Prato típico venezuelano

[3] Prato típico venezuelano

[4] Prato típico venezuelano

[5] Prato típico venezuelano

[6] Prato típico venezuelano

 

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