Autor da história: Matilde Matos Correia

Quem conta a história: Anónimo

Organização: ULHT

Título: A vida de bengala

Nível: Intermédio

Língua: Português

Resumo: Esta é a história de duas amigas de infância, Joana e Sofia, que vêm as suas vidas marcadas para sempre por um acidente provocado por uma brincadeira inocente. Uma delas perde uma perna e cinquenta anos mais tarde, recordam como caminharam juntas até ao presente.

Palavras-chave: infância, tragédia, amizade, deficiência, inclusão.

A vida de bengala

Era o dia 3 de agosto de 1970 quando numa quinta do Alentejo duas crianças que brincavam alegremente num estábulo mudaram para sempre o rumo da vida. Eram por volta das 15 horas de uma calorenta tarde alentejana quando Joana e Sofia escolheram uma máquina de ordenhar como o divertimento predileto. A maquinaria, desenvolta para a época, andava à volta a uma velocidade não muito alta, mas a força industrial com que dava a volta foi o suficiente para o desenrolar do acontecimento fatídico. A brincadeira consistia em saltitar por entre as várias cavidades de madeira da máquina simulando uma espécie de corda de saltar. As raparigas iam à vez para cima da roda gigante e, de tempos em tempos, trocavam. Até a esse momento, tudo ocorria de feição, o tempo passou e o entretenimento parecia resultar na perfeição. 

 

Ambas se divertiam, o estábulo estava à sombra de uma árvore de grandes dimensões e por esse motivo era um ótimo local para fugir às altas temperaturas dos meses de verão na região. Sofia chegou a uma altura em que se saturou da brincadeira e saltou para fora da máquina ainda com esta a trabalhar. O salto não foi calculado, o normal de uma miúda de 10 anos que não tem a consciência dos perigos do mundo. Ficou com parte do vestido preso numa farpa de grandes dimensões de uma das cavidades da máquina. A reação ao puxão que sofreu assim que levantou voo foi equilibrar-se com a perna direita para trás, de volta à máquina. O que aconteceu a seguir foi digno de um filme de terror. O pé de Sofia pisou em falso e o que era para ser uma tábua de madeira pertencente à estrutura acabou por ser o buraco onde se encontrava a corrente forte e enferrujada do instrumento agrícola. No momento em que percebeu que o pé se encontrava preso, Sofia soltou um berro de dor extrema e ainda teve tempo para pedir ajuda em desespero antes de desmaiar.

 

Joana observava a cena incrédula. Não teve qualquer reação, tremia por todos os lados e a primeira coisa que fez foi chamar os pais que se encontravam no interior da casa. A distância entre a casa e o estábulo era de uns 600 metros e os esforços de Joana para fazer alguém aparecer foram em vão. Apressou-se a ir em direção ao botão da máquina, que se encontrava embutido na parede a alguns centímetros, e carregou no mesmo com todas as suas forças. A máquina demorou alguns segundos a abrandar e por fim parar de vez e Joana conseguia ver Sofia, que parecia morta, coberta de sangue na parte inferior do corpo. Entrou em pânico, correu até à casa principal para pedir ajuda aos pais. 

 

O caminho parecia o triplo da distância, as pedras multiplicavam-se no chão arenoso e todos os outros obstáculos que podiam aparecer, apareceram. Joana fez o melhor que conseguiu até chegar à grande porta de madeira pintada de verde e começar a bater desesperadamente enquanto gritava por socorro. 

 

O resto do verão foi passado no hospital. Sofia perdera uma quantidade de sangue bastante superior à do tamanho do seu pequeno corpo. A perna teve de ser amputada, mas a rapidez com que os pais de Joana se encaminharam para o hospital e a forma engenhosa como estancaram o sangue salvou a vida, ainda curta, de Sofia. 

 

As duas amigas passaram o resto do verão juntas. Joana, que era do Alentejo, estava encantada por passar as férias na cidade grande, Lisboa, onde ficava o hospital, e Sofia, contente por ter uma amiga a fazer-lhe companhia constantemente. 

 

A partir desse dia, as duas amigas tornaram-se muito unidas. A distância que as separava geograficamente era atenuada com a troca de correspondência sistemática. As cartas eram às dezenas por mês e assim que entravam de férias estavam juntas, outra vez, em casa uma da outra. 

 

Nos primeiros tempos, Sofia andava abalada com o facto de ter de viver permanentemente sem uma perna. Apesar de conseguir adaptar-se bem às terapias para ter uma vida normal, reparava que as outras crianças a olhavam de maneira diferente. As primeiras cartas que enviou a Joana foram a contar o receio que tinha em enfrentar a escola sem ter a amiga por perto. 

 

Os primeiros dias de escola foram difíceis, não pela falta de empatia dos colegas, mas pela maneira diferente com que a encaravam. Não a convidavam para brincar no recreio porque, olhando para o seu estado, assumiam que não tivesse capacidade de participar nas brincadeiras. Às vezes, tinha de responder aos amigos mais curiosos que lhe faziam muitas perguntas: se doía, se sentia a perna, se conseguia saltar, se podiam tocar… As aulas de ginástica, que eram as suas preferidas, tiveram de ser retiradas do seu horário, pelo menos, até poder usar uma prótese. Sofia não gostava de ficar só a ver e houve um dia que pediu ao professor se o podia ajudar a preparar as aulas. A partir desse dia, passou a ser a assistente do professor e dos colegas, gostava da sensação de ser útil e era como se fizesse as aulas com os colegas. 

 

Com o tempo todos se foram habituando, claro que havia crianças mais maldosas que faziam pouco dela, mas o hábito trouxe-lhe capacidade para lidar com os insultos. Uma vez, sem que ela estivesse à espera, um rapaz da turma acima disse-lhe que ela era tipo um pirata sem barba e a reação de Sofia foi dar-lhe com a muleta nas costas. Na altura, o diretor chamou-a para repreender a ação e ela, ao invés de explicar a situação, fingiu estar muito arrependida pelo seu comportamento. O diretor não a castigou e o rapaz nunca mais se meteu com ela. 

 

Finalmente, passado ano e meio sobre o fatídico dia Sofia, recebeu a sua primeira prótese. O processo de cicatrização foi lento e trabalhoso, mas finalmente chegara à altura de sentir a normalidade de ter duas pernas outra vez. O progresso foi quase nulo durante meses, mas a vontade de voltar a andar sem usar muletas teve peso na recuperação de Sofia. Caminhar outra vez, pôr um pé a seguir ao outro, parecia tarefa quase impossível nos primeiros tempos. A primeira vez que se tentou pôr de pé e andar caiu e o desalento crescia cada vez mais. 

     

Durante o processo de reabilitação, Sofia desistiu de usar a prótese, dizia que não valia a pena conseguir andar se não pudesse correr. O seu estado anímico não era o melhor e acabou por desistir de ir à terapia. 

 

Joana, de dia para dia ganhava mais vontade de se tornar no apoio incondicional da amiga. Uma ideia crescia-lhe na cabeça já há alguns meses e, finalmente, no dia em que descobriu as intenções de Sofia de abandonar a recuperação, pediu aos pais para ir viver uns tempos com ela. 

 

Uma proposta destas, de uma miúda de 11 anos, podia ser totalmente despropositada, mas, naquela altura, o altruísmo da filha comoveu os seus pais que lhe deram cem por cento de apoio. Foram os primeiros a entrar em contacto com a família de Sofia e a resolver as questões burocráticas da viagem e da escola. 

 

Joana não perdera tempo e, mesmo antes de aparecer de surpresa em casa da sua melhor amiga, preparou uma chegada em grande. A ação podia correr muito bem, mas podia ser totalmente incompreendida. Entrou em contacto com alguns colegas de Sofia que, a partir daquele dia, passaram a ser os seus, e combinou um encontro em casa da amiga para a fazer repensar as suas escolhas. 

 

Num dia cinzento de chuva, Sofia sai de casa apoiada nas suas muletas, desce os 3 degraus da porta da sua casa que davam acesso a um jardim relvado para apanhar ar puro. Há três dias que não saía de casa, sentia-se triste e cada vez mais se mentalizava que ia ficar assim para sempre, pensava todos os dias no momento em que a sua vida mudou e nas oportunidades que se escapavam por entre os dedos por lhe faltar uma “peça”. A cabeça de uma criança de 11 anos normalmente não viaja por pensamentos tão obscuros. A consciência da sua realidade não a permitia sonhar como as crianças da sua idade. Nesse dia, sem que nada o fizesse prever e após chegar ao pequeno terraço situado na parte traseira da casa deparou-se com um cenário para lá de qualquer sonho. Os amigos, os conhecidos, a sua melhor amiga de todas e a sua família, todos a esperavam sentados no muro de pedra que servia de divisória entre a relva e a gravilha. 

 

A reação de Sofia foi cair pela perda de forças na perna perante tamanho ajuntamento. Nas mãos de cada pessoa havia  cartazes com frases motivadoras e votos de força para voltar a ter ânimo. Desta vez, a queda não a afetou de forma negativa, só mostrou o agradecimento perante tamanho gesto de amizade. Ali, no meio da multidão, sem demonstrar qualquer euforia ou estado de exaltação, viu Joana, olhava-a com um ar esperançoso e meio a medo da sua reação. Sofia percebeu que era a Joana que tinha de agradecer, mas perante o choque inicial agradeceu a todos por estarem presentes.

 

Esta é a história que as duas amigas contam, passados 50 anos, a todas as crianças e adultos do centro de reabilitação. Pessoas que, por uma razão ou por outra, perderam as suas capacidades físicas e que precisam de uma história de sucesso a que se agarrar. 

 

A missão de vida destas duas amigas passou a ser a de entregar um futuro às pessoas que não o conseguiam imaginar. A partir do dia em que Joana se mudou para casa de Sofia, o destino foi-se construindo, a terapia revelou-se um sucesso. Passados alguns meses, Sofia já conseguia andar sem qualquer impedimento. O segundo passo foi começar aos poucos a correr e, passado um ano, já conseguia saltar. Ter um apoio incondicional ao seu lado provou que uma das grandes ferramentas que o ser humano tem ao seu dispor não custa dinheiro e não é palpável, é a amizade incondicional.

 

O futuro destas duas amigas acabou por ser moldado por um só acontecimento, aprenderam a fragilidade da vida e a forma repentina como tudo pode ficar diferente. Tornaram-se ativistas na inclusão de pessoas com deficiências físicas, criaram uma associação de ajuda a pessoas amputadas e todos os dias melhoram mais um pouco a vida dos que a rodeiam. O trabalho em conjunto na área de arquitetura veio trazer maior base de suporte a todos aqueles que vieram depois. A criação de maiores e melhores infraestruturas para terapias e no campo público pensam as ruas, os passeios, os acessos de forma prática para não existir qualquer constrangimento à circulação de pessoas que não conseguem simplesmente: “passar por cima”.

Joana e Sofia formaram cada uma a sua família e os seus filhos têm a mesma relação que elas tinham quando eram da idade deles, algo de que se orgulham muitíssimo. O caminho para a vida adulta fez-se de forma muito natural.

 

Na adolescência, as duas jovens arrebatavam corações. Tanto Sofia com as suas pernas muito finas e de estatura alta que acabava numa cara oval, de olhos cor de amêndoa e o cabelo muito moreno, como Joana, de corpo atlético, uma postura muito elegante, com as costas sempre direitas e esticadas que herdara certamente dos muitos anos a montar a cavalo. No alto da cabeça, usava sempre um penteado entrançado. Os cabelos loiros entrelaçavam-se numa perfeita harmonia e os olhos verdes davam-lhe um aspeto meio delicado. 

 

As primeiras saídas à noite foram positivas para este duo que, sem precisar de muita gente, fazia a festa. A energia contagiante foi determinante para as relações que vieram a estabelecer mais tarde. Criavam uma dinâmica todas as noites. Uma vez, Sofia arranjou um tecido brilhante, parecido com uma bola de espelhos e enfeitou a sua prótese. Vestiu uma saia reveladora e saiu de casa assim. Nessa noite, na chegada à discoteca, as luzes refletidas na perna faziam as delícias de todos os amigos. Era assim, a fazer de bobo da corte, que se sentia bem. 

A vida transformara-se quando, desde cedo, percebera que podia fazer tudo, desde desporto a trabalhos em qualquer área. Então, moldou a sua passagem pelo mundo com ironia e boa disposição. 

 

Aos 26, conheceu o que viria ser o seu futuro marido. Longe iam os tempos em que combinar programas com rapazes a deixava nervosa, afinal, o que poderiam achar eles de ter alguma coisa com uma rapariga sem perna? Mas todos a surpreenderam pela positiva e nunca tal assunto fora um problema. Sofia sentia-se uma privilegiada.

Sofia e Joana têm um projeto que ajuda jovens carenciados a obterem as suas próteses e terem uma boa qualidade de vida. Oferecem instalações para a prática de desportos adaptados às necessidades de cada um e contam com a ajuda dos respetivos filhos que, desde cedo, foram confrontados com esta realidade. A aceitação começa na educação das crianças e quanto mais cedo existir um envolvimento dos mais novos nestas questões, menor preconceito existirá no futuro. 

Sofia nunca deixou de fazer nada. Assim que aprendeu a lidar com a sua prótese, voltou a correr, a montar a cavalo, teve uma adolescência igual a todos os seus amigos, estudou e entrou no mercado de trabalho e constituiu uma família. O seu trabalho serve para que as pessoas que não veem um futuro risonho à partida se inspirem no percurso de vida dela e percebam que há esperança também para elas. 

     

 


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