Autor da história: Elias Filho
Quem conta a história: Anónimo
Organização: ULHT
Título: Os primeiros dias da família Dias
Nível: Intermédio
Língua: Português
Resumo: As aventuras e desventuras da família Dias, oriunda do Brasil, que se instala em Portugal em busca de uma vida melhor. Assistimos ao relato da sua integração, das suas lutas da forma como se integraram num país estrangeiros, nas saudades da sua terra natal.
Palavras-chave: família, coragem, emigração, união, amor, fé.
Há quem peça coragem aos céus, há quem peça ajuda e respostas… Contudo, há quem se depare com situações que exigem coragem. Tal coragem, que a família Dias precisou quando arriscou deixar tudo para trás no Brasil, e decidiu viver uma nova vida em Portugal. A família Dias é composta por um filho chamado Guti, uma filha chamada Lua, um pai chamado Lia, e por uma mãe chamada Maria. Há também um tio chamado Folhas que, apesar do seu espírito livre e individualista, confiou o seu rumo de vida à sua família. Esta história é contada por Maria, que explicou como foi essa mudança de país, o que sofreram, o que temeram, o que choraram e sobretudo, o que conquistaram.
Era 2003, quando Lia e Maria, já casados há nove anos, decidiram viver noutro país. Viviam numa casa bastante pequena no fundo do quintal que pertencera à Lolica (uma das dez irmãs de Maria) e o seu marido Jão. Lolica e Jão sempre foram muito bondosos e generosos, mesmo com a sua própria família, cederam as portas de parte do seu terreno, para Maria e sua família viverem. Os filhos, Guti e Lua, tinham uma ligação muito forte com a tia Lolica, pois enquanto Maria e Lia iam trabalhar, Lolica cuidava com muito carinho de ambos, desde o dia em que cada um nasceu. Lia sofria bastante com os seus empregos eram sempre inconstantes, a segurança financeira era quase inexistente. Maria, que nunca deixou de trabalhar e cuidar dos filhos, sentia-se cada vez mais angustiada pela situação financeira em que se encontravam. Nunca passaram dificuldades e o pão nunca faltou na mesa, mas a ansiedade causada por incertezas e medos, fazia com que Lia se sentisse pressionado por todos pela situação em que se encontrava. Inconformado e com a ambição de uma vida melhor, Lia decidiu que mudar de país seria a melhor opção. Encorajado por Maria, decidiram ir para os Estados Unidos. Maria e Lia organizaram a sua vida e deixaram tudo pronto para seguir essa aventura, até que Carlinhos, marido de Luzia, outra das dez irmãs de Maria, sugeriu a Lia que fosse para Portugal. Carlinhos já vivia em Portugal com Luzia. Pouco questionou Lia, que aproveitou essa oportunidade e seguiu para Portugal primeiro. Maria esperou que Lia se organizasse, para então ela e os seus filhos irem posteriormente. Guti tinha apenas dois anos e Lua tinha oito.
Lia e Oliveira, sobrinho de Jão, que também decidiu viajar, ao chegarem a Espanha foram barrados pelos seguranças do aeroporto. Ficaram presos durante um dia, sendo interrogados até serem libertados para prosseguirem a sua viagem para Portugal. Quando chegaram a Portugal, tiveram de viver com Carlinhos e Luzia, que tinham duas filhas, uma de 6 anos e outra ainda na barriga. A casa tornou-se apertada, e Lia viu-se na obrigação de ajudar com o que podia. Lia, juntamente com Oliveira, começaram a trabalhar numa empresa de alumínios. Lia sofreu muito longe dos filhos. Abalado por ver o sofrimento da filha Lua, e abalado por pensar que Guti poderia não sentir a sua falta e poderia eventualmente esquecê-lo, pois era apenas um bebé. Maria sempre deixou a imagem de Lia muito viva, com fotos e vídeos, durante todo o crescimento de Guti, para que este não se esquecesse do pai. Já Lua, muito apegada ao pai, sofreu bastante com a sua ausência. Sendo as saudades uma das coisas mais difíceis de superar, o clima, por sua vez, foi outra causa essencial para que o desânimo de instalasse. Um inverno horrível com chuvas tremendas, às quais Lia não estava habituado no Brasil, onde o clima é tropical. Mas a persistência falou mais alto e Lia continuou a batalhar para trazer a sua família para Portugal.
Com meio caminho andado para Maria e os seus filhos irem para Portugal, Guti teve problemas de saúde que impediu a família de viajar naquele momento. Guti, com três para quatro anos, teve muitas complicações a nível respiratório, o que fez com que ficasse internado e quase perdesse a vida duas vezes. Lua na sua fase já pré-adolescente, tinha vários amigos no bairro onde vivia, tendo um certo receio de viajar. Já com quatro anos, Guti sofria das várias influências dos adolescentes do bairro onde viviam, que só diziam palavrões. Por ser ainda uma criança, Guti tinha um comportamento bastante rebelde, apesar de toda a educação e do comportamento respeitoso que tinha pela sua mãe em casa, na rua não o reproduzia, fazendo assim com que Maria quisesse apressar a sua ida para Portugal.
Foi então, em 2006, que Lia conseguiu ter as condições necessárias para receber a sua família em Lisboa e, assim, Maria e os seus filhos foram para Portugal. Lua já tinha onze anos e Guti cinco. A parte mais difícil foi a despedida de Lolica e Jão, que eram como pais para Guti e Lua, e um porto seguro para Maria. Folhas, o único irmão homem de Maria, que vivia uma vida muito rebelde e perigosa, decidiu viajar para Portugal com Maria e os seus sobrinhos. Ao chegarem ao Porto, a emigração barrou Maria e Folhas durante algumas horas para fazerem umas perguntas. Folhas, já irritado e com vontade de urinar, pede para ir à casa de banho. O pedido foi negado pelos seguranças, o que fez com Folhas ameaçasse urinar na frente de todos ali presentes, provocando mais complicações na viagem. Depois de algumas horas, Maria e a sua família foram libertados e seguiram a sua viagem para Lisboa. Foi no aeroporto de Lisboa que a família se reencontrou e a emoção aconteceu.
Lia pediu que Maria não começasse a trabalhar para cuidar das crianças e assim Maria fez durante pouco tempo, até que começou a trabalhar. Guti, que outrora era uma criança rebelde, estava num país novo, onde não conhecia outras pessoas, fazendo com que se tornasse uma criança completamente diferente. Guti ficava aos cuidados da Vó Tété, mãe de Carlinhos, que pouco falava português, pois era paraguaia. Lua, já com onze anos, estranhou o país ao início, mas foi-se adaptando. O primeiro emprego de Maria foi como estafeta, fez várias amizades e aprendeu muito. Trabalhar na entrega de publicidade nas caixas do correio deu a conhecer a Maria toda a cidade de Lisboa. Mas nem tudo foi um mar de rosas, pelo contrário, Maria chorou durante dias nas escadas do prédio onde morava. Considerava Portugal um país calmo e melancólico, sentia falta das conversas e da amizade que tinha com os seus vizinhos. Maria chegou a comentar que, em Portugal, é cada um por si e Deus para todos, o que a entristecia muito.
As coisas foram melhorando para a família. Guti e Lua começaram a estudar em Portugal. Para Lua, a escola foi um momento bastante complicado, pois estava habituada a um tipo de ensino, a uma cultura, a uma linguagem…E até apanhar o ritmo levou tempo e por ter o sotaque brasileiro sentiu-se discriminada e prejudicada academicamente. Para Guti, a adaptação foi bem rápida, pois iniciou os seus estudos em Portugal. Muitas famílias perguntavam se Guti tinha nascido em Portugal, pois apesar de Maria afirmar a naturalidade do rapaz, o seu sotaque português, perfeito e natural, confundia as pessoas ao redor. Crescendo com a cultura portuguesa, Guti era como se fosse um híbrido. Dentro de casa era brasileiro, fora de casa era português, era natural.
Lia, chegava a casa, na maioria das vezes, muito cansado, mas ainda assim disposto a dar atenção a toda a família. Guti, sendo o mais novo, era o que mais precisava dessa atenção. Os Dias, de um modo unânime, odeiam que lhes façam cócegas e, na maioria das vezes, essa brincadeira era a mais comum entre toda a família. Guti, apesar de ser um rapaz deveras carinhoso com a mãe, tinha brincadeiras mais brutas com pai. Lua, por ser mais delicada e mais madura, gostava de conversar e de debater assuntos mais adultos. Lia, mesmo trabalhando na construção civil, viu-se na obrigação de continuar o seu sonho que havia deixado no Brasil, a música. Lia chegou a ter uma carreira a solo na música quando era mais jovem, tendo gravado várias canções religiosas em estúdio. Lia, sendo um homem de muita fé, assim como toda a sua família, fez carreira na música só que desta vez num duo. Lia e Nascimento, o seu parceiro, fizeram muito sucesso por volta dos anos de 2008 e 2010, quando fizeram uma digressão pelo Brasil, em 2010. Lia, desde 2003 que não visitava a sua terra natal. A felicidade de Lia foi gigantesca quando reencontrou os seus pais que continuavam com uma vida muito simples e humilde. Isso motivou Lia a ajudar cada vez mais financeiramente. Passados cinco meses, Lia regressa a Portugal e, após algum tempo, o duo decidiu parar. Não vivendo durante algum tempo o seu sonho, Lia continuou a sua jornada na construção civil para que a sua família continuasse confortável.
Maria começou a trabalhar muito cedo. Antes de ter uma família, era atleta, ganhou vários prémios e medalhas de atletismo. Sempre sonhadora, tinha vários projetos e planos. Quis ser atriz, jornalista, fazer um intercâmbio e conhecer o mundo a estudar… Contudo, abdicou dos seus planos para ser mãe e ter um lar. Sempre muito alegre e bastante tagarela, conquistou muitas amizades em Portugal. Sempre trabalhadora, mas também sempre cuidadora do seu lar. Maria sempre incentivou os seus filhos a aproveitarem a vida e a estudarem, pois sabia que eram crianças talentosas e cheias de sonhos. Era um aviso, mas as crianças nunca perceberam. Maria queria que as crianças aproveitassem aquilo que ela não aproveitou. Lua, a filha mais velha, mostrou o seu talento para a música desde cedo, tendo uma voz potente e associada ao gospel. Já Lia, tinha um estilo sertanejo romântico. Lua, desmotivada com a vida escolar, sempre se dedicou à música, acompanhando o pai nas suas agendas e eventos. Guti, ao crescer, ao ver que o seu pai já tinha tido uma história na música e que a sua irmã tinha um talento descomunal, questionou-se, seria suficientemente bom para seguir o mesmo caminho? Guti sempre foi muito criativo desde criança, um amante das várias artes. Tinha a mania de criar personagens e histórias. E ai de alguém que deitasse ao lixo, por engano, a sua coleção de personagens desenhadas em papel. Mas Guti era diferente do seu pai e da sua irmã. Gostava de ouvir todos os tipos de música, mesmo que não fosse religiosa, e isso fez com que demorasse muito tempo a encontrar o seu estilo. Guti era mais parecido com Maria, cheio de sonhos e projetos. Lua e Lia, apesar de sonhadores, eram mais conservadores e tradicionais.
Em 2012, Lua já com os seus dezassete anos, cheia de saudades dos seus amigos e família, decide voltar para o Brasil e viver temporariamente com os seus tios, Lolica e Jão. Um ano depois, Maria, bastante preocupada com a sua filha, decide visitá-la, levando Guti consigo, já com doze anos. Por ter ficado muito tempo fora, Lua deixou de estar legalizada em Portugal, deixando Maria ainda mais preocupada. Um dos fatores que mais causa dor de cabeça a todos os emigrantes é conseguirem ter a sua situação legalizada. Maria cuidava de toda a documentação da família. Era um grande peso e, por isso, teve de respirar fundo muitas vezes. Todos os anos, a família tinha de renovar os seus documentos. E, por vezes, a falta de um documento obrigava a novo agendamento que, frequentemente, demorava muitos meses. Era a situação mais cansativa para toda a família, daí Maria ter ficado frustrada pela filha ter perdido os documentos. No entanto, Lua, passados uns anos, regressou para Portugal. Graças a Deus, a família estava na época das “vacas gordas”, da prosperidade, pois Lia arriscou criar a sua própria empresa e trabalhar por conta própria. Mas, como todos os empresários sabem, há altos e baixos, e Lia viveu isso na pele. Ajudava a sua família no Brasil e quem necessitava. Lia e Maria sempre foram bondosos, pois ajudavam até com o que não tinham, sendo uma inspiração e recebendo sempre familiares que também se mudaram para Portugal em busca de uma nova vida.
Lua sempre foi trabalhadora desde muito nova, tal como os pais, e apesar de todas as dificuldades que passou como estrangeira, nunca deixou de acreditar e ter fé no seu futuro, sobretudo quando regressou a Portugal e teve de reconquistar o seu espaço no país. Depois de Lua ter ido para o Brasil, Guti tornou-se o braço direito em casa. Ajudava a sua mãe com todas as tarefas e ajudava o seu pai na empresa. Se não fosse por Guti e Maria, Lia não teria a sua empresa de pé até aos dias de hoje. Contudo, mesmo Guti ajudando o seu pai e a sua mãe de coração, ficava triste, pois não queria aquela vida. Na maioria das vezes, os emigrantes tendem a seguir um padrão de vida e de rotina, e Guti não queria isso para si, o que o motivou a seguir o seu maior sonho, a música, tal como a sua irmã. O coração de Maria e Lia enchia-se de orgulho ao verem no que os seus filhos se estavam a tornar. Jovens fortes e destemidos e, sobretudo, humildes e batalhadores.
Folhas, o tio maluco e conhecido por muitos como “louco” e, muitas das vezes, tendo a sua sanidade mental questionada por muitos, mudou da água para o vinho. Antes de imigrar para Portugal, Folhas tinha uma vida bastante perigosa. Envolvia-se com delinquentes e más companhias. As suas outras irmãs sempre tiveram muitas dores de cabeça e temiam pela vida de Folhas constantemente. Este foi aconselhado a viver noutro país para sua segurança. Apesar de contrariado à partida, acabou por aceitar e mudar de país. Folhas era rebelde e gostava de contrariar as autoridades, mas por estar noutro país, sentiu-se na obrigação de respeitar. Com um estilo de linguagem único e com roupas peculiares, Folhas tinha grande facilidade em fazer amizades em todo lado. Trabalhou na construção civil durante muito tempo. Com o passar do tempo, mesmo não perdendo a essência divertida e brincalhona, Folhas já não era a mesma pessoa. Passou a ser o tio das tecnologias. Tudo o que precisassem ele tinha, era conhecido como o mestre das “gambiarras”. Aconselhava sempre os outros a aproveitarem a vida como deve de ser, tal como ele. Viveu com a família Dias durante anos, até que conseguiu a nacionalidade e encontrou um espaço para si, para ter tudo aquilo que sempre quis, uma casa cheia de bugigangas.
Chegamos ao fim da história da família Dias como imigrantes que venceram e amam Portugal. Uma história que não conta apenas factos soltos, mas sim, uma perspetiva de uma família que deixou tudo para trás para conseguir uma vida melhor. Esta é apenas uma história entre milhares de pessoas que saíram dos seus países de origem, onde muita vezes seria mais fácil ficar e gozar dos privilégios de ser o país natal. Sabemos que o mundo está cheio de preconceitos e ideias que têm de cair por terra. Muita vezes, estas pessoas são classificadas como aproveitadores e ladrões por estarem a ocupar um espaço que supostamente não lhes pertence. Todas famílias querem ser prósperas e todos nós somos seres humanos e temos sonhos. Quem partilha multiplica, e se acolhermos as pessoas que são diferentes e que sofrem, e partilharmos respeito, empatia e união, a paz mundial deixa de ser uma Utopia e passa a ser uma realidade alcançável.