Autor da história: Rita Figueiredo
Quem conta a história: Anónimo
Organização: ULHT
Título: Uma história de vida esquecida
Nível: Avançado
Língua: Português
Resumo: Esta é a história de Irene, uma mulher que viveu uma vida marcada pela violência doméstica e pela tragédia da morte de uma filha. Ficamos a conhecer a sua mãe, avós, tio e padrasto. Assistimos ao seu sofrimento e à sua luta para dar aos filhos uma vida feliz.
Palavras-chave: família, sofrimento, violência doméstica, memória
Ano de 1931. Nasce Irene Polónio Pereira dos Santos Costa. Filha de Carmelina Rodrigues Polónio e José Pereira dos Santos. Em pleno centro da capital lisboeta, Irene viu a luz do dia na Rua da Mãe d’água numa pequena casa com poucas divisões, muito pequenas, num prédio pombalino de 3 andares do século XVIII, construído no âmbito da reconstrução da cidade de lisboa, após o grande terramoto de 1755. Na Rua da Mãe d’água, a casa de Irene situa-se junto da grande mãe d’água de acesso ao Aqueduto das Águas Livres.
Para além dos pais, viviam com Irene a sua avó Isabel, o avô Bernardino e o Tio Lino. O avô Bernardino, polícia de profissão, era uma figura austera, de bigode imponente, de integridade inabalável e o grande pilar da família. A avó, figura terna, foi a sua verdadeira mãe e fonte de carinho, pois a mãe Carmelina, modista de alta costura, que trabalhava para abastadas e proeminentes famílias de Lisboa, era uma pessoa ausente devido ao seu trabalho. Na sua presença, Irene só contava com ralhetes, castigos, autoridade e constante trabalho nas tarefas domésticas. Mas a sua grande referência afetiva era na verdade o seu tio Lino, também ele polícia de profissão e irmão mais novo de Carmelina. Era ele que a levava a passear, lhe trazia doces às escondidas da mãe e lhe dava carinho. O pai de Irene faleceu muito cedo, quando esta ainda era bebé, tendo Carmelina voltado a casar mais tarde com Domingos, que se tornou na figura paternal carinhosa, apesar de nem sempre ser capaz de conter as investidas e fúrias de Carmelina para com a filha.
A vida em Lisboa, tal como em todo o país, nos anos 30, era já dominada por uma pobreza generalizada da população, contrastante com grandes fortunas e vida faustosa de uma pequena elite, resultado de um sistema político opressor e obscurantista característico da ditadura fascista. Irene foi crescendo dentro de uma mentalidade instituída em que ser pobre e honrado era uma virtude. Sistema de valores este que era reforçado pelo papel de uma igreja conivente com o sistema.
Irene era uma criança irrequieta e aventureira, inocente, que estudava num colégio de freiras: Ficou a memória de um episódio em que a jovem Irene com fome e ainda longe da hora do almoço decidiu escapar-se para o refeitório em busca do cesto da comida. Ao chegar ao refeitório, deparou-se com o quadro do sagrado coração de Jesus, sobre o qual todos os alunos eram avisados que fizessem o que fizessem, estivessem onde estivessem, Jesus estaria sempre a olhar para eles. Hesitante, mas com fome, Irene decidiu trepar a uma mesa e virar o quadro ao contrário para que Jesus não a visse. Após a descoberta da situação pelas freiras e questionadas todas as alunas sobre quem teria sido a autoria, na sua inocência, Irene assumiu ter sido ela a autora da ação. Algo que lhe veio a valer mais tarde uma bela tareia em casa, porque como é óbvio a mãe Carmelina foi chamada à escola.
Aproximava-se o início da 2ª guerra mundial e apesar de Portugal se ter mantido à margem dos confrontos, as consequências desta tragédia humanitária faziam-se sentir no país. Faltavam bens de todo o tipo e, durante longos anos, comer dependia de ter ou não ter senhas de racionamento e Irene muitas vezes aguardou em muitas filas para poder ajudar a trazer comida para casa.
Aos 15 anos, já após a guerra, Irene conhece o seu único namorado. Fernando nascera em Mangualde, vila da beira alta, onde os avós da jovem tinham uma casa e de onde conheciam a família de Fernando. Este era 9 anos mais velho que Irene e viera trabalhar para Lisboa, como empregado bancário e tinha mais 2 irmãos. Nos períodos de férias que Irene passava em casa dos avós, todos os 3 irmãos se lhe declararam, porém, os seus olhos só viam Fernando, que passou a ser visita regular na casa de família em Lisboa, sempre sob o olhar atento da sua família. Já com 19 anos, num célebre serão, sentados no sofá folheando uma revista, surge uma foto de uma gata e seus filhotes. A imagem suscitou a curiosidade de Irene que questionou a sua mãe à frente de toda a família: “Oh, mãe! Como é que as mulheres têm os filhos? É pelo rabo como as gatas?”. Silêncio e gargalhada geral. No final, Irene ficou sem saber como era, pois ninguém lhe explicou. Estava na véspera do seu casamento.
Os primeiros tempos de casada foram passados numa grande casa rural na vila de Nelas, perto de Mangualde, para onde Fernando tinha sido deslocado para trabalhar na dependência bancária local. Foram tempos difíceis para Irene, que se viu isolada da família e constantemente observada pelas gentes da terra, para quem ser esposa do funcionário bancário era sinal de estatuto social. Era frequente baterem-lhe à porta pessoas desconhecidas oferecendo-lhe garrafas de azeite, sacas de batatas e até mesmo galinhas.
É nesta fase da vida que a personalidade de Fernando se começa a revelar. Um homem, provavelmente inseguro da beleza da sua esposa, ciumento ao ponto de pregar as janelas para que Irene não pudesse aparecer à janela, isolando-a, assim, do mundo envolvente. Irene não podia sequer sair à rua sem a companhia de Fernando.
Algum tempo depois, o casal regressa a Lisboa e instala-se no Cacém, onde nasce a primeira filha, Teresinha e, 18 meses mais tarde, o segundo filho, José Adelino, Zézinho. Nesta casa, a família veio a experienciar alguns fenómenos paranormais como portas a trepidar sem razão aparente a meio da noite, serem acordados com chapadas e a Teresinha fugir de um bicho preto no meio de um corredor luminoso, que provocavam situações de medo por ser uma situação desconhecida.
Foi nesta casa que a família viveu a sua maior tragédia. Aos 3 anos de idade, Teresinha adoece de manhã e falece ao final da tarde. Os médicos do hospital onde foi assistida não conseguiram salvá-la de uma gastroenterite, apesar de questionarem repetidamente o que a bebé tinha comido e não encontrarem nada.
A morte de Teresinha teve um efeito devastador nos pais, sobretudo no pai. Este ficou à beira da loucura, querendo mesmo matar os médicos, que acreditava serem os culpados da morte de Teresinha. Fugia de casa durante a noite em desespero e desorientação e Irene tinha de correr atrás dele para o acalmar e convencer a regressar a casa. Com o trauma, perdeu o equilíbrio emocional e a única razão para não se ter suicidado foi a existência do seu filho bebé, José Adelino. Durante esta altura, Irene tornou-se o pilar da família tendo suportado todas estas situações.
Anos mais tarde, veio a descobrir-se que Carmelina teria dado fruta verde a Teresinha, sem nunca o ter revelado. Esta descoberta levou então a que Fernando viesse a romper completamente a ligação com a família de Irene e obrigando-a a fazer o mesmo durante décadas.
Irene não conseguiu ir ao enterro do seu padrasto e amigo, de quem gostava imenso. Porém, após saber da morte do tio, Irene enfrentou o seu marido dizendo que queria ir ao seu funeral, pois este foi a pessoa de quem ela mais gostou durante a sua vida e o seu maior apoio.
Após ganhar alguma estabilidade emocional, a família muda-se para uma casa na Penha de França, onde conhecem uns vizinhos que também tinham acabado de perder o seu filho pequeno e se reconfortavam com José Adelino. Esta situação gerou desconforto à família que, após alguns anos, acabou por decidir sair daquela casa, com o intuito de aliviar a relação do filho com os vizinhos, e ir para um terceiro andar num prédio em Benfica.
Em Benfica, nasce a terceira filha do casal, Isabel, e convidam os antigos vizinhos para serem padrinhos da bebé, como forma de compensação por terem afastado o seu filho.
A vida de Irene foi estável durante alguns anos, até que a família teve de mudar novamente de casa, ficando agora num terceiro andar na Amadora.
Nesta casa, Isabel adoece com 6 anos, vítima de uma nefrite, encontra-se em risco de vida e demora 6 meses a recuperar numa clínica. Confrontado com esta situação, o casal revive todo o trauma de ter perdido a filha Teresinha e, mesmo sem dinheiro, Fernando interna a filha na melhor clínica de Lisboa.
Menos de um ano depois, Fernando adoece também, tendo necessitado de três intervenções cirúrgicas consecutivas. Situação esta que veio agravar toda a situação financeira da família, deixando, assim, dívidas que viriam a arrastar-se por duas décadas.
Foram tempos difíceis, quer para Irene quer para Fernando, que se viram obrigados a muitas vezes não ter o que comer para poder dar aos seus filhos. Eram frequentes as idas à loja de penhores para empenhar os seus bens mais valiosos em troca de dinheiro para as necessidades mais básicas e prementes, tendo ainda, muitas vezes, a família pedido dinheiro emprestado a conhecidos.
Fragilizado, o marido de Irene entrega-se ao álcool sempre que se encontra em casa ou de férias. Eram frequentes as situações de violência que, muitas vezes, faziam com que Irene se trancasse no quarto com os filhos para ficarem em segurança. Com medo, nada mais podiam fazer do que esperar até que Fernando adormecesse até ao dia seguinte, de nada se recordando. Certa vez, o medo foi tão avassalador que Irene preparou os filhos e, durante a noite, às escondidas, saiu de casa. Os três fizeram vários quilómetros a pé, da Amadora até Barcarena, refugiando-se em casa dos antigos vizinhos, agora padrinhos de Isabel.
Nesta fase da vida, Fernando revela-se um pai autoritário, repressivo, de mentalidade retrógrada e provinciana, impondo aos filhos regras austeras, desadequadas e ultrapassadas em relação às dinâmicas sociais de então.
Zézinho, já adolescente, não tinha autorização para ir a casa de amigos ou sair sem companhia para onde quer que fosse. Era-lhe exigido que estudasse até à exaustão, o que veio efetivamente a acontecer, tendo acabado por deixar precocemente os estudos. Isabel não tinha autorização para brincar com as outras crianças na rua, como era então hábito na altura. Irene procurava discretamente compensar os filhos permitindo algumas escapadelas às escondidas do marido, revendo-se assim, de certa forma, na figura protetora do seu tio Lino durante a sua própria infância.
Entretanto, Zé Adelino crescia, aproximando-se da idade do serviço militar. Em tempos de guerra colonial, a vida dos soldados era difícil. Treino militar duro e intenso e más condições alimentares. A mobilização para qualquer uma das colónias poderia significar um adeus definitivo. Vivendo sob a ameaça de uma possível mobilização a qualquer momento, a família procurou apoiar ao máximo o jovem José Adelino e, pela primeira vez, por falta de condições financeiras, Irene foi obrigada a procurar um emprego, para que fosse possível, todas as semanas, José Adelino levar consigo um farnel para o quartel. Ao encontrar trabalho num colégio infantil, Irene teve, talvez pela primeira vez na vida, momentos de alguma liberdade. Convivia com as colegas e adorava as crianças; mas foi por pouco tempo. A situação não agradava ao seu marido e Irene viu-se obrigada a regressar a casa. Mas, para que o dinheiro pudesse continuar a entrar, começou a tomar conta de crianças na sua própria casa. Zé Adelino foi, entretanto, mobilizado para Angola e a angústia tomou conta da família. Acabou por ser desmobilizado. O alívio foi, no entanto, breve, pois ele voltaria a mobilizado e desmobilizado por mais 3 vezes, a última das quais devido ao desencadear da revolução do 25 de Abril e consequente processo de descolonização. A vida familiar tinha, entretanto, deixado marcas psicológicas profundas no jovem que, ao terminar o serviço militar obrigatório, decidiu continuar na instituição militar, onde veio a desenvolver um estilo de vida libertino, para grande tristeza dos pais.
Entretanto, Isabel cresceu, e Irene, receando que o estilo autoritário e repressivo do marido tivesse as mesmas consequências na sua filha mais nova, tornou-se mais permissiva na sua educação, proporcionando-lhe mais momentos de fuga e socialização com os amigos numa época de maior liberdade. No entanto, Isabel, mais rebelde do que o seu irmão, foi gradualmente aumentando a sua incompatibilidade com o pai, até chegar ao ponto de rotura aos 18 anos quando o pai a convidou a sair de casa. Isabel saiu para viver na casa de uma antiga professora e Irene, mais uma vez, foi à luta, incompatibilizou-se ela também com o marido e foi trabalhar como mulher a dias para ajudar a filha que não tinha emprego.
Alguns anos passaram. José Adelino casou, foi pai de uma menina, Ana Cristina. Isabel arranjou emprego, continuou a estudar e Irene foi mantendo a sua vida na mesma casa, embora separada do marido.
Um dia, Irene descobriu estar doente com um mioma uterino que a levou ao hospital para uma intervenção cirúrgica. Durante os anos de separação do marido, este tinha deixado de beber e envelheceu precocemente, desgostoso com o desabar da sua família. O internamento de Irene foi a oportunidade para Isabel procurar restabelecer os elos familiares e, terminada a cirurgia e no regresso à enfermaria, Irene encontrou o marido e a filha reconciliados à sua espera, recuperando assim alguma felicidade e paz.
Foi o início de uma nova etapa de vida, Irene e Fernando reconciliaram-se e, já recuperados financeiramente de décadas de dívidas, puderam usufruir de uma vida conjugal em paz e harmonia. Fizeram algumas viagens de férias e viveram por alguns anos a sua felicidade, até que a doença bateu de novo à porta. Um cancro no pulmão levou Fernando, em 6 meses, à morte.
Após a morte de Fernando, o filho de Irene afasta-se completamente da mãe e da irmã, deixando-as sozinhas e continuando a sua vida libertina. A dependência do álcool piorava e andava constantemente a mudar de mulher, dando pouca estabilidade emocional à própria filha, tendo Irene ido buscar a neta para
Após um episódio violento na Academia Militar durante o qual José Adelino destruiu o refeitório, foi internado numa clínica psiquiátrica.
Em 2001, 10 anos após a morte do marido, Irene vê nascer a sua segunda neta, Rita, que lhe permitiu viver uma nova alegria e encontrar um novo objetivo, que era ajudar a criar a neta, tendo assim ido viver para casa de Isabel. A felicidade de ajudar a criar a neta foi unicamente ensombrada por um acidente. Na vivenda, ainda em acabamentos, onde viviam, os pintores que terminavam o trabalho no primeiro andar esqueceram-se de colocar as traves de proteção de um buraco aberto na laje entre o rés do chão e o primeiro andar. Enquanto Irene preparava o jantar para a família, Rita brincava no tapete da sala. Sem que a avó se apercebesse, gatinhou escada acima e Irene ouviu a voz da neta mais ao longe, procurou-a e encontrou-a à beira do buraco desprotegido. Infelizmente, Irene só chegou a tempo de ver a neta precipitar-se pelo buraco. Em choque, Irene desceu as escadas a correr e, desorientada ao ver a neta no chão, pegou nela ao colo e ligou ao seu genro. A neta recuperou a consciência e foi encaminhada para o hospital, onde, após observação, se concluiu não haver qualquer problema. Mais um susto na vida de Irene que, felizmente, desta vez, acabou bem.
Aos 2 anos, a neta entra na creche e Irene passa a tornar-se visita assídua da sua prima Isilda que mora em Mangualde. Com o tempo e a excelente relação com uma prima que considera irmã, Irene passa a maior parte do tempo em Mangualde, vindo ocasionalmente à sua casa na Amadora.
Durante este tempo, o estado de saúde mental do seu filho agrava-se, até que recebe a notícia do seu internamento hospitalar, que termina no seu falecimento ao fim de alguns dias, vítima de cirrose. Apesar de a morte do seu filho ter deixado Irene extremamente triste por não se ter despedido dele com uma relação saudável, foi possível fazer um período de luto sem ficar com a consciência pesada, pois sempre fez de tudo para tentar que o filho melhorasse.
Passados alguns anos, numa das viagens de regresso de Mangualde, Irene confidencia à filha que se encontra sem dinheiro. Estranhando o facto e questionando a mãe sobre como tudo tinha acontecido, Isabel tentou perceber como a situação teria chegado àquele ponto. Irene nunca conseguiu explicar como perdera o dinheiro, afirmava que não se lembrava de nada. A partir daí, tornou-se percetível para a família que algo de errado se passava com a memória de Irene e, após uma avaliação médica, foi diagnosticada com a doença de Alzheimer aos 78 anos.
Mantendo a vontade de continuar a viver com a prima Isilda, esta foi ajudando no controlo da medicação e do dinheiro, até que foi necessário apoiar também as questões de higiene pessoal. As dificuldades de higiene foram-se agravando até que surgiu a necessidade de Irene passar a viver definitivamente com Isabel, o genro e a neta. Hoje em dia, com 90 anos, Irene já tem pouca memória das pessoas e dos eventos da sua vida. A demência já não lhe permite, por vezes, identificar o parentesco das pessoas com quem vive apesar de ter a perceção de que estas pessoas lhe são chegadas. Os dias são incertos. Umas vezes, calmos e pacíficos, outras vezes, a confusão mental assusta-a e desorienta-a, só conseguindo acalmar com a sensação de conforto e as demonstrações de carinho por parte da sua família.
Como foi detetada e identificada numa fase ainda precoce, foi possível retardar os efeitos da doença em Irene. Um excelente acompanhamento médico e uma medicação adequada têm sido decisivos para a sua qualidade de vida. Vive um dia de cada vez e, apesar de ter momentos menos bons, vive uma vida feliz e rodeada por pessoas que se preocupam com ela e que têm imenso carinho por ela.