Autor da história: Bruno Esteves

Quem conta a história: Anónimo

Organização: ULHT

Título: Uma estrada a que devo chamar casa

Nível: Avançado

Língua: Português

Resumo: A história de Dores, uma mulher de origens humildes, simples, que dedica a sua vida ao trabalho e à família. Dores gosta de conversar, de trocar opiniões, gosta de aprender sobre o mundo e tem um sonho desde sempre que consegue concretizar, embarcar num navio de cruzeiro.

Palavras-chave: família, humildade, sonhos, trabalho, memória

Uma estrada a que devo chamar casa

Após anos e anos de uma vida simples, sem grandes alterações à rotina entre a sua casa e as casas onde trabalhava, dada a sua profissão de sempre, Maria das Dores Mendes Alves – mais facilmente identificada por Dores – viveu uma experiência que iria mudar a sua vida de uma forma inimaginável.

 

De origem humilde, com um gosto especial pela lida doméstica, até mesmo fora do horário e local de trabalho, Dores é uma pessoa ativa e curiosa. Hoje, com ricos 79 anos, ainda que reformada, continua a trabalhar, pelo menos, meio-dia e tenta manter as suas rotinas vivas e manter-se ativa durante o dia todo e, por vezes, mais do que vinte e quatro horas seria o ideal. Com um gosto insaciável pela troca de opiniões, conversas longas e risos demorados, Dores é também uma pessoa muito ligada às relações familiares, e nessas mesmas relações dá tudo de si. Como seria de prever, alguém que procura tão avidamente perceber o mundo através da troca de opiniões sobre tudo, sem temas proibidos, é alguém cuja curiosidade navega além-fronteiras em relação aos outros, nomeadamente: colegas de trabalho, amigos de infância e, até mesmo, gerações mais novas.

 

Prova da sua curiosidade, empenho e ambição, é o facto de ter completado a quarta classe após ter sido mãe, num regime de ensino noturno, sem suspender o trabalho. Embora oriunda de uma região do centro de Portugal, numa época de poucos costumes no que concerne ao empoderamento feminino, Dores assumiu desde cedo uma perspetiva avant-garde sobre vontades, objetivos e ambições. Viagens dentro de Portugal, e interesse pelo mundo em geral, despertaram uma vontade, aliada a uma predisposição, de melhor conhecer aquele mundo que, até então, apenas imaginava, ou via num ecrã de televisão.

 

A família, especialmente o seu marido e o seu filho, foi um porto de abrigo durante toda a sua vida, acompanhando de perto todas as felicidades e conquistas da Dores, bem como as conquistas de todos individualmente, ou em grupo. O seu marido, também com um uma visão semelhante no que se refere a viajar e perceber melhor o mundo, desde o primeiro dia até hoje, 57 anos de casamento depois, embarcou em viagens e aventuras, sempre de mãos dadas com a sua esposa. Por outro lado, Vítor, o filho que resulta deste casamento, veio trazer mais ambição num primeiro momento, até, mais tarde, se tornar um dos motivos para o sorriso contagiante de Dores e apoiar nestas aventuras, ajudando a quebrar barreiras que, para pessoas de origens tão simples e humildes, eram como barreiras intransponíveis.

 

Escusado será dizer que qualquer experiência fora daquela que era a lida do quotidiano seria estranha à Dores ou ao seu marido. Ainda assim, ambos sentiram uma vontade e desejo em conjunto de fazer algo diferente. Mas é precisamente aí que começa uma grande volta na vida do casal, enquanto casados, e enquanto pais do outrora menino, agora enorme motivo de orgulho para os seus pais, o Vítor. Dada a boa disposição e vontade de se manter ativa, Dores acaba por falar com o seu filho, e chegam ao acordo de embarcar numa aventura que era do tamanho do universo para todos. Embarcar acaba por ser o termo ideal para esta decisão, uma vez que definiram que a experiência que iam viver juntos era, então, fazer um cruzeiro. Decisão muito ponderada, uma vez que era algo totalmente novo e exigia uma grande preparação por parte de todos. Contudo, era um enorme fator de felicidade, tanto para a Dores como para a sua família.

Então, no ano de 2013, Dores, acompanhada de um grupo de dez pessoas onde se incluía o seu filho e marido, fez, pela primeira vez, um cruzeiro, em direção às ilhas gregas. Nos dias de hoje, tal visão pode ser mais relativizada, ser algo mais comum, mas talvez não consigamos perceber a dimensão do sentimento que esta experiência assumiu dentro de uma pessoa que dedicou a vida a ser feliz com o dia a dia, aproveitando regularmente aqueles que são os prazeres do quotidiano, sem cometer loucuras que não faziam parte desse mesmo quotidiano.

 

Mas, nesse caso, a preparação para a realização de um desejo exigiaa mais tempo. Posto isto, Dores teve de preparar todas esta viagem em conjunto com o seu filho que tratou de toda a burocracia, questões mais técnicas, mas sempre acompanhado pela Dores. A definição de ponto de embarque, quais os meios de transporte ou até mesmo encontrar um guia para a viagem foram alguns dos pontos que levaram esta experiência a necessitar de toda uma preparação e organização, uma vez que, à parte da Dores e família, também iriam outras sete pessoas com eles nesta viagem.

 

É certo dizermos que a vida é uma incerteza que caminha de mãos dadas com experiências agridoces, com pontos altos e baixos. Contudo, a voz da Dores leva-nos a acreditar que sonhar não é possível só por vezes, mas sim lutando diariamente por prazeres moderados, balanceada com uma gestão de dor e medo devidamente equilibradas, como se se regesse por uma corrente filosófica epicurista. Nesta decisão não foi exceção esse sentimento de responsabilidade por satisfação de prazeres, embora mais extravagantes, aliado a um crescente sentimento de receio e dúvida, o que equilibra esta corrente epicurista tão característica da Dores.

 

Os receios foram ultrapassados no momento em que toda a preparação tomou posse de uma percentagem de tempo do dia da Dores e do Vítor, o que acabou por ser um escape para a ansiedade que era finalmente poder sair e viajar além das portas que muitas vezes os recursos financeiros fecham. Com grande felicidade, a jornada começou.

 

Uma das sete pessoas que acompanharam a Dores, e respetiva família, chega a casa dela para pernoitar, uma vez que no dia seguinte seguiriam juntos para o aeroporto. E, no dia seguinte, seguiram para o, até então, desconhecido aeroporto com demasiadas placas para ler sem a ajuda do Vítor, que decifrou mistérios como fazer o check-in naquele sítio imenso com pessoas dos quatro cantos do mundo.

 

Algumas horas depois do check-in, já com a viagem completa, pisaram terra firme, agora em Itália, mais precisamente em Veneza. Após a chegada, rumaram ao hotel onde acabaram por ficar durante uma noite, para depois dar seguimento ao plano anteriormente definido. 

 

Já em Veneza, perto da hora de almoço, definiram o passeio, sendo que era a altura ideal para irem provar as maravilhas gastronómicas locais, e passear um pouco pela cidade. Numa tarde recheada de descoberta e convívio, a noite foi a parte do dia que mais marcou a mente daqueles cuja perspetiva de felicidade se resume à partilha, conversa e qualquer coisa saborosa para comer no meio disto. E, assim sendo, Dores recorda o alegre convívio ao lado da pizzaria, quando todos estavam a degustar umas fatias de pizza. 

 

Nessa noite acabam então por descansar calmamente no hotel, visto que, por volta das nove horas do dia seguinte, iriam sair novamente de lá.

 

Manhã cedo, perto então das nove horas, o grupo desce dos quartos, faz o check-out para entrar na carrinha que os iria levar até ao tão ambicionado cruzeiro. E assim foi, desceram, despediram-se do local onde pernoitaram e entraram na carrinha que os levava em direção ao sonho que tanto ambicionavam realizar.

 

Chegados ao barco, com grandes filas organizadas pelo staff do cruzeiro, o Vítor multiplicou-se para ajudar todas as pessoas do grupo com a língua inglesa no momento do check-in. Depois dessa etapa, acabaram por entrar no cruzeiro, rumo à grande aventura.

 

Logo na entrada do barco, um fotógrafo dava as boas-vindas com uma foto de grupo para que se eternizasse o momento que, para grupos como o da Dores, era histórico nas suas vidas. Então, após capturado o momento da entrada no barco, dirigiram-se aos elevadores que os levaram até ao piso onde eram os quartos. Para espanto inicial do grupo, o elevador era grande o suficiente para levar o grupo inteiro de uma só vez. Mas não foi só, o elevador tinha vidro que dava para ver o exterior, o que foi algo marcante para a Dores.

 

Regressados do quarto, dirigiram-se à receção, onde se depararam com luxos aos quais tinham tido acesso meramente visual, através de imagens televisivas, filmes e, até, em sonhos. Escadas longas e ornamentadas, acompanhadas por lustres amarelos com as dimensões de uma divisão de uma casa foram elementos capazes de desencadear um sentimento inenarrável de perplexidade e espanto, dado o luxo inigualável que estava perante os seus olhos.

 

Após uma pequena visita por aquele hall de entrada que quase parecia infindável, regressaram aos quartos, claro, acompanhados pelo tão querido por todos do grupo, o Vítor. As orientações eram realmente importantes, uma vez que, tal como no aeroporto, as indicações eram pouco para a dimensão do barco, que engolia um grupo de pessoas cujas vidas se resumiam a prazeres moderados, recatados e longe de tecnologias flutuantes que nas suas mais tenras idades, julgavam ser quase mitos.

 

À noite, sob a liderança do Vítor, a Dores e demais elementos do grupo, reuniam-se para irem jantar, dividindo-se por duas mesas – uma delas com quatro, e outra com seis elementos. Contudo, os dois lugares vagos que existiam na mesa de quatro pessoas, acabou por ser ocupado por duas mulheres portuguesas que conheceram já dentro do cruzeiro, e que acabaram por usufruir das bebidas que o pack de viagem do grupo da Dores incluía. Terminados os jantares, os dez elementos reuniam-se num dos bares do cruzeiro, onde acabavam por consumir algo e conviver antes de rumarem aos seus quartos para descansar. 

 

Antes de subirem aos quartos, as indicações de horas para se encontrarem na receção eram dadas pelo Vítor, que tinha a agenda definida para o dia seguinte. Todas as manhãs, na hora acordada nas noites que antecediam, o grupo reunia-se junto da receção para ir tomar o pequeno-almoço, que era um buffet grande e diversificado.

 

Um dos passeios que a Dores recorda, foi a ida a Santorini. Para irem até lá, o grupo teve, então, de sair do cruzeiro, rumar em direção à ilha num barco, estilo Ferry, que os levou até a uma ilha totalmente nova. Na ilha, já havia uma carrinha à espera do grupo, para os levar ao topo e, a partir de lá, poderem fazer um trajeto completo até à base, passando por vários recantos daquela ilha onde a cor branca predomina, acompanhada por um fundo azul do mar. No meio de uma rua larga, debaixo de um sol quente, com risos pelo meio, encontraram mulas, o que levou a que alguns elementos do grupo fugissem de medo dos animais, mas ficasse esta história presente, sem escapar das suas memórias quando recordadas as experiências naquela visita à ilha.

 

Após mais uma nova experiência, agora pela ilha de Santorini, o grupo acaba por regressar aos quartos, felizes e animados com mais um objetivo cumprido. Todos os dias da viagem acabaram por ter um plano único, que levava todos os membros do grupo a visitarem diariamente sítios, cidades ou monumentos diferentes, de forma a conseguirem envolver-se ao máximo na experiência e a aproveitar na totalidade a possibilidade de estar nas ilhas gregas.

 

Menciona também Dores um cartão, quase como se se tratasse de algo mágico que permitia entrar nos quartos, registar entradas e saídas do cruzeiro, o que revela uma ligeira dessincronização a nível tecnológico, uma vez que era quase irreal um pequeno pedaço de plástico duro e retangular, conseguir controlar tanta coisa, e tão rapidamente. Dores pertence a uma geração para quem a fotografia representa um ato quase mágico, de conseguir parar o tempo, eternizar uma memória, capaz de fazer a própria mente viajar até a determinado momento imediatamente. Pese embora tenhamos equipamentos capazes de fazer este trabalho com uma elevada facilidade nos tempos que correm, o brilho nos olhos de Dores ao rever um vídeo ou uma fotografia daquela viagem, tornam saborosa a experiência de conhecer quem ame realmente os pequenos objetivos cumpridos na vida.

No que diz respeito a questões de sentimentos sobre esta experiência, tornou-se difícil identificar as palavras que consigam acompanhar o ritmo acelerado do coração ao falar de tal experiência, embora duas palavras tenham assumido um óbvio destaque: felicidade e orgulho. É certo que as mãos já enrugadas da Dores não coincidem com o espírito jovem e empreendedor que ainda tem, bem como a sua voz doce, quente e calma. A felicidade epicurista que podemos associar a Dores revela-se sob as mais tácitas formas de amor que o mundo conhece: apoio da família, risos, carinho e conforto. A felicidade para Dores não passou por andar em terras desconhecidas, ou embarcar numa estrutura repleta de luxo e condições ideais, mas sim fazê-lo com o seu marido e o seu filho, que menciona sempre de forma ternurenta, maternal e orgulhosa. São eles quem realmente assumiram uma base para a vida da Dores e aí reside o segundo sentimento. A família direta de Dores é o seu maior motivo de orgulho, o cerne da sua existência. Em suma, são toda a água capaz de fazer mexer o moinho constantemente, que é a vida da Dores, e com tanta força de vontade e determinação.

 

A maternidade está intrinsecamente ligada ao elo que se cria durante os regulares nove meses de gestação, todavia esses laços ficam eternamente ligados aos dois seres que o criam: a mãe e o descendente. No caso, Dores fez com que houvesse um reforço constante de demonstrações de carinho durante a vida, perpetuando atos de boa-fé, preocupação e de reconhecimento para com o Vítor. Não só através da amamentação, ou até muitos anos mais tarde estar a viajar com o seu filho num cruzeiro pela primeira vez, Dores viveu com este sentimento de orgulho constante que a levou a, não só a si, mas também ao seu filho a ensinar o que era a felicidade mais pura da vida, que é o amor.

 

Mas não só Dores relata a sua relação com o Vítor de forma apaixonada, visto que a viagem aconteceu porque todos os membros do grupo tinham um carinho enorme por ele, e isso é algo que levou a Dores a ficar ainda mais orgulhosa do seu filho e, obrigatoriamente, do seu bom papel de mãe desde o primeiro segundo. E, já no final da viagem, Dores acabou por se comover porque os setes elementos do grupo tinham combinado oferecer uma camisola ao Vítor como forma de reconhecimento pela sua ajuda e orientação, naquela que foi, provavelmente, a melhor experiência das suas vidas. Dores não se conteve nesse momento e acabou por libertar pelos seus olhos claros, sob a forma de lágrimas, a emoção que é sentir orgulho pela experiência que acabava de viver, aliada a uma situação de transferência de carinho e reconhecimento para com alguém que, de certa forma, também lhe pertence.

 

No fim da viagem, prevalece o sentimento de sonho realizado. Sempre com um espírito positivo, Dores focou-se sempre na bonança, para relativizar as tempestades desta vida. Isso foi um elemento-chave para que o seu dom natural de ser feliz prevalecesse e perdurasse com o passar dos anos. Embora oriunda de origens tão humildes onde o luxo era um conceito assente numa linha tão ténue como livre ou poder comer alguma coisa melhor, ainda que em pouca quantidade, esta viagem representou um volte face nesta sequência. Embora tenha saído da terra natal para rumar a Lisboa, Dores nunca baixou os braços e lutou até chegar a um barco enorme, rumo às ilhas gregas onde até havia buffet. Mas porquê a menção ao buffet? Sabendo, então, das origens humildes da Dores, é certo que o conceito de buffet era irrealista perante um início de vida que não ditaria um fado tão afortunado. Estes detalhes, por vezes tão ínfimos, são a base de todo o sucesso desta experiência da Dores no cruzeiro. O buffet que seria uma imagem quase divina na sua infância, andar por terras que ouvia falar nas notícias e que nem sabia bem como seria o cheiro ou as pessoas de lá, ou até mesmo ver escadas e lustres brilhantes como se do Sol se tratassem. No fundo, o deleite desta travessia num barco pelo mar adentro foi todo o conjunto de circunstâncias que possibilitaram à Dores tomar contacto direto com sonhos que, infelizmente, muito não conseguiram cumprir.

 

Ainda sobre a experiência, que futuramente originou outras viagens, a Dores diz, com as seguintes palavras, aquilo que, por vezes, o coração sente e a boca não sabe verbalizar: “Porque eu também digo: além de eu viajar, (…) de já termos viajado, se não fosse o meu filho, eu também nunca tinha feito estas viagens. Nunca tinha feito parte de nada disto que tenho feito”. Esta é a melhor súmula que podemos fazer de toda esta experiência vivida pela Dores. Este amor incondicional pelo filho foi o ponto que nos fez chegar aqui.

 

Reparemos que começámos por perceber que a vida da Dores era uma sucessão de ocasiões simples e de experiências, digamos, controladas, até chegarmos ao ponto que nos faz compreender que, mesmo sendo humildes, podemos conquistar muito na vida, sermos felizes e dar amor a quem nós amamos. Dores prova-nos que uma mãe é muito mais do que só uma mulher. Mãe é saudade e amor, felicidade e ansiedade, é presença que não se compara. É um mundo. É única. Dores encanta os que a rodeiam, alegra até o mais triste, ama até ao fim. No fundo, o que acabamos por reter é uma mensagem de superação, que nos leva numa viagem desde a sua infância recatada, diretamente do centro de Portugal, até ao centro do mundo, recheada de demonstrações de benquerença, orgulho e amor.

 

E, no fim, porque não nos centramos em fazer destes três sentimentos a Volta da Nossa Vida?

            


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