Autor da história: Luiza Ferreira
Quem conta a história: Anonimo
Organização: ULHT
Título: A apanha do melão
Nível: Inicial
Língua: Português
Resumo: Esta é a história de um episódio contado na primeira pessoa por uma mulher imigrante que trabalha com o seu marido no pesado trabalho da apanha do melão. Ela descreve um dia normal nas suas vidas de sacrifício e partilha um episódio que exemplifica bem as suas difíceis condições de trabalho.
Palavras-chave: emigração, agricultura, trabalho pesado, expectativas.
São seis da manhã quando a camioneta nos deixa na estrada de terra seca em frente ao campo de melões sem fim à vista. Eu, o meu marido e mais pessoas que chegam, ficamos à espera do patrão. Em vez dele, aparece um casal de ajudantes para nos orientar. Somos levados para dentro de uma pequena casa, onde deixamos os nossos pertences. Logo em seguida, gritam connosco para começarmos o trabalho pesado.
Caminho por entre a primeira e segunda fileira de melões, a admirar o contraste do amarelo com o verde das folhas. Ouço as instruções dos ajudantes sobre qual a posição de cada um e, em seguida, sem muita conversa, começamos. Os homens vão à nossa frente a cortar os melões e nós, as mulheres, atrás, a colher as corpulentas frutas e a pô-las em grandes baldes azuis. Pego no meu primeiro melão e sinto-o como uma bola de gelo na mão. A terra, diferente daquela da estrada, está húmida, o que me faz perguntar se é o orvalho ou se a plantação foi regada.
Várias fileiras depois daquela onde estou, conseguimos ver outro grupo a colher melões, mas com uma diferença, um trator leva os baldes e corta os melões. Sinto um pouco de inveja, pois o dia vai ser mais longo e cansativo para quem está em desvantagem.
Já são dez horas da manhã quando terminamos quatro fileiras de um quilómetro cada. Bebo inúmeros goles de água antes de ir para a quinta fileira. Viro o meu rosto com a garrafa para o alto e vejo o céu azul limpo e o sol que, sem percebermos, se afastar do chão húmido e muito abafado. Continuamos a apanha, a nossa posição é sempre agachada, encolhidos, de costas para o sol que queima as nucas de quem está sem chapéu. Por sorte, tenho um boné vermelho na cabeça, pois, quando viramos para a direção do sol, na sexta fileira, a posição é ainda pior.
A certa altura, ouço um homem a gritar, a provocar o nosso grupo. Quando o avisto, percebo que é o patrão, que vem a conduzir um trator e a reclamar que diminuímos o ritmo. Alguém responde que está muito quente e esta é a razão, outros concordam com murmúrios. O patrão grita para continuarmos sem diminuir o ritmo e afasta-se. Avançamos até o sol estar mais acima das nossas cabeças, indicando o meio-dia.
Finalmente, os ajudantes dão o sinal para o almoço. Todos abandonam o campo à procura de algum canto com sombra para comer. O meu marido é mais rápido e, quando dou conta, já pegou na nossa marmita. Diz que já não há espaço para almoçar dentro da pequena casa. Olhamos à volta e não há sombras. Sentamo-nos na entrada da casa, ao sol e observo o meu marido a devorar a comida feita às pressas na noite anterior. Olho para a minha marmita, mas não consigo comer, estou sem apetite.
Uma hora da tarde e estamos novamente no campo. Bebo bastante água. Está muito mais quente do que o normal. Ao fim de trinta minutos, muitas das pessoas do grupo já perguntam qual é a temperatura. Continuo calada e o meu corpo trabalha automaticamente, movimentos monótonos. De repente, o trator resolve ajudar o nosso grupo. Então, duas pessoas e o meu marido sobem para cima do trator para pegar nos melões. Eu estou entre uma mulher que me entrega os melões e um homem que recebe a fruta em cima do trator. A dada altura, perco a noção da quantidade de vezes que repetimos estes movimentos. Recebo o melão e ele bate diretamente no meu peito, tento apanhá-lo, mas a minha mão fraqueja, está completamente dormente.
Antes de ter tempo para pensar, sinto-me mal e o meu estômago vazio revira-se. Apoio uma mão na barriga e outra na boca e a mulher que está atrás de mim preocupa-se. O meu marido, de cima do trator, grita para a mulher ajudante me deixar descansar um pouco. Ela diz-me para ir para uma sombra durante algum tempo. Ando em direção a uma árvore e quanto mais ando menos sinto o corpo. Tento focar a visão na árvore, mas não vejo nenhuma sombra. Começo a desesperar, a minha respiração acelera naquele ar abafado. Procuro uma sombra e a única coisa semelhante é um Jeep estacionado perto do campo. Vou até ele e arrasto o meu corpo para baixo do carro. Estou imóvel, só sinto o bafo por todo o meu corpo e pulmões. Perco a noção do tempo.
Num piscar de olhos, vomito, a seguir, as minhas calças ficam molhadas, no terceiro piscar de olhos, sinto algo a puxar-me para algum lugar. Tudo fica branco e eu estou deitada numa maca. Mais tarde, talvez no dia seguinte, vejo no telejornal que este dia foi o mais quente do ano em Portugal. A apanha de melão não acabou por causa de várias pessoas se terem sentido mal. Os médicos dizem-me que o meu marido me encontrou no instante certo. Sinto um alívio. Muitas pessoas como nós arriscam-se em trabalhos como este por falta de opções. No dia mais quente do ano foi como um renascimento para mim, naquela apanha de melão, como uma esperança de que tempos melhores estão por vir.